sábado, 16 de setembro de 2017

Por que seu selfie com comida me causa vergonha...

Na foto: Um homem ajuda uma mulher obesa a se alimentar, diante de uma mesa repleta de comidas calóricas. Fonte: http://www.myproana.com/index.php/gallery/sizes/29928-funny-fat-people-pictures-2/large/


Fo publicado ontem pela FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations), o relatório A Situação da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo. Pela primeira vez, os dados foram compilados e apresentados conjuntamente por mais três organismos internacionais: IFAD (International Fund for Agricultural Development), UNICEF (United Nations Children’s Fund) e WFP (World Health Organization).  E as perspectivas não são animadoras.

A insegurança alimentar e a subnutrição, depois de um breve período de declínio, entre 2014 e 2106, voltaram a aumentar. A taxa foi de 10% entre 2016 e 2017. Hoje, segundo o relatório cerca de 11% da população mundial se encontra em risco de nutrição ou estado de fome. Desse total, cerca de 30% ou mais de 200 milhões de pessoas são crianças abaixo de cinco anos de idade. Afetadas pela desnutrição. Muitas delas em estado de crescimento subnormal.


Na imagem: reprodução parcial do relatório 2017 da FAO sobre a fome e desnutrição no mundo. Fonte: http://www.fao.org/state-of-food-security-nutrition/en/

A contrapartida mesquinha desses dados, é que, no mesmo período aumentou o número de adultos e crianças abaixo de cinco anos com obesidade. Enquanto mais de 800 milhões de adultos e crianças passam fome, ou estão subnutridas, outros 700 milhões estão muito acima do peso. O relatório aponta que o aumento dos fenômenos climáticos anormais e as guerras contribuíram para a piora dos números.

A meta proposta por esses organismos internacionais, capitaneados pelas Nações Unidas, de erradicar a fome e a desnutrição até 2030 dificilmente serão alcançados. E há o desafio maior de prover alimentos suficientes para uma população mundial que passará dos 10 bilhões de seres humanos em 2050.
 
Na foto: Criança mal nutrida no Yemen bebe resto de suco industrializado recolhido no lixo. Segundo o Unicef 2,2 milhões de crianças naquele país estão subnutridas ou passando fome.Crédito da imagem: © Mohamed al-Sayaghi / Reuters Fonte: https://www.rt.com/news/382418-unicef-yemen-children-famine/

Ironicamente, o resumo do relatório publicado em 16/09/2017 (disponível em http://www.fao.org/state-of-food-security-nutrition/en/) começa com a seguinte frase: “There is more than enough food produced in the world to feed everyone, yet 815 million people go hungry.”

Ou seja, existe mais que suficientes alimentos produzidos no mundo par alimentar a todos, mas no entanto 815 milhões de pessoas estão famintas. Não faltam alimentos. Mas sua distribuição e acesso pelos mais pobres continua a piorar, mesmo após décadas de esforços globais dos organismos internacionais envolvidos no assunto.

Mas de quem é a culpa?
Na imagem: visão de um longo corredor de supermercado do ponto de vista de quem empurra um carrinho de compras. Fonte: http://www.alamy.com/stock-photo-food-hall-full-shopping-trolley-is-pushed-through-a-hallway-with-several-49648614.html

Dos gordinhos? Não. Embora, pelos números e pela lógica, a quantidade em excesso, de alimentos ingeridos pelas pessoas obesas (seja por hábitos não saudáveis, desinformação ou compulsão) pudesse alimentar com sobra os mais de 800 milhões de famintos, a comparação é inverídica. Na verdade, essas pessoas podem se alimentar em excesso pela desigualdade da oferta de alimentos, em diversas partes do planeta. E esse desequilíbrio é influenciado pela desigualdade de renda e acesso a esses alimentos.

Eu costumo me referir a um eletrodoméstico comum em boa parte dos lares, dos mais pobres aos mais ricos como um dos vilões dessa desigualdade. Sim, a geladeira, me parece a guardiã da má distribuição de alimentos e pela fome, mesmo em lares humildes onde ela está presente, porém vazia a maior parte do tempo.  O sistema capitalista de produção de bens de consumo sempre investiu muito dinheiro na publicidade desse produto. Desde sua invenção a mais de um século, tem sido apresentada as massas como a grande representante de um status quo de sucesso financeiro das famílias. Fotos de geladeiras cheias e coloridas, com produtos em sua maioria industrializados, já está indelevelmente gravado em nosso inconsciente como sinônimo de fartura e segurança.

Manter bilhões de geladeiras cheias em uma parte do planeta implica em manter ativo e em constante crescimento um sistema de produção de alimentos que não é sustentável, agride e exaure a terra, rouba empregos de uma grande parte da população mais pobre e sem instrução, que veria na agricultura de subsistência, pelo menos, senão a melhoria de suas microeconomias familiares, mas a segurança alimentar básica.


Se pudéssemos calcular a quantidade em bilhões de toneladas de alimentos estocados em todas as geladeiras do mundo nesse exato momento, certamente veríamos que há uma quantidade várias vezes maior que o necessário para alimentar bem toda a população mundial por semanas ou meses. Partindo desse raciocínio para o patamar da produção industrial, é quase inimaginável a quantidade de comida que está estocada em grandes redes de supermercados, em depósitos atacadistas que garantem o suprimento constante a essas redes e nos silos de armazenamento das indústrias alimentícias que suprem  todo esse sistema.
Na imagem: Latifúndio de cultivo industrializado. Fonte: http://fafdl.org/blog/2017/01/03/the-increasingly-shaky-foundations-of-industrial-agriculture/

E o capital envolvido em toda essa cadeia produtiva precisa ser constantemente retroalimentado para gerar mais lucro. Lucro para poucos. Esse “megaorganismo” que “cuida orgulhosamente” (e se vende em publicidades vistosas como garantidor do bem estar humano), manipula a oferta, os preços e o direcionamento de quase toda a produção agrícola e animal do mundo. E disponibiliza essas “commodities” somente a quem possa pagar por elas.

A indústria de sementes, agrotóxicos, alimentos e demais insumos para a agricultura faz ainda pior: infiltrada em governos, sistema financeiro e mesmo organismos globais de bem estar, exerce um lobby violento para que diversas ações de desenvolvimento de sistemas agrícolas em pequena escala, como a agricultura familiar, não sejam fortes e efetivas o bastante. O ideal perverso é que a comida nunca seja dada gratuitamente. Os que tem renda, pagam caro por ela e os que passam fome devem recebe-la já paga por governos ou entidades assistenciais. A máxima “não existe almoço grátis”, usada alegoricamente no mundo dos negócios, para alertar que não existem favores que não serão cobrados posteriormente, se aplica literalmente no mundo da produção industrial de alimentos.

Na imagem: Um agricultor do estado de Uttar Pradesh, na Índia, sentado observando desolado a perda de sua safra causada pelas tormentas e chuvas anormais. Crédito da imagem: PTI Fonte da imagem: http://www.thehindu.com/news/cities/Delhi/rain-may-delay-harvesting-in-punjab-haryana/article7050704.ece

E até agora falamos em um sistema injusto mas que, teoricamente funcionasse sem desperdícios. Mas por trás dos bilhões de geladeiras, frigoríficos, depósitos e silos, abarrotados de comida a ser consumida futuramente, está o desperdício. Processos industriais de preparação de alimentos geram mais desperdício, lixo orgânico e poluentes do que a preparação caseira baseada em produção artesanal.  Alimentos estocados têm prazos de validade. E a perversidade do sistema que, como já foi dito, não permite a gratuidade, é tanta, que preferem incinerar, enterrar, reprocessar alimentos impróprios para o consumo humano depois de sua validade, do que os distribuir gratuitamente antes de venderem. Lembrando sempre que “não deve existir almoço grátis”!

Mas o que posso fazer?

Se eu comer menos, resolvo o problema da fome no mundo? Devo jogar fora minha geladeira novinha? Ou quem sabe, criar umas galinhas na varanda do meu apartamento? Ou quem sabe romper com esse sistema capitalista, vender tudo e comprar um pedaço de terra e virar agricultor? Eu diria que todas essas coisas são úteis, possíveis e factíveis. Mas não isoladamente. E não necessariamente de maneira tão radical. O mais difícil é vencer a comodidade! E com isso influenciar o mercado das “commodities” a que nos acomodamos a aceitar. A preguiça natural do ser humano é a arma principal que o Sistema usa para nos fazer viver e consumir como ele deseja. Por isso, no mercado financeiro “comodidades” viraram bens de capital. 

O mais importante é a conscientização. Enxergar esses problemas em sua natureza global, mas começar a agir de maneira local e pessoal. Se alguém está obeso, deve realmente restringir o consumo de calorias. Não pensando em salvar o planeta. Embora isso ajude. Mas pesando em salvar a própria vida. Comer em excesso significa gastar dinheiro e tempo além do necessário. Já que o almoço não é grátis. Significa gastar menos dinheiro com médicos, remédios, academia, roupas, energia elétrica e outras coisas dentro dessa cadeia desnecessária.

Manter a geladeira mais vazia, além de estimular a luta pela perda de peso, faz bem para o  bolso e para o meio ambiente. E é preciso também inspecionar o que você costuma ter dentro dela. Como disse antes, esses objetos eletrodomésticos são seres traiçoeiros. Para que comprar alimentos para o mês inteiro (ou meses) e estocar na maldita ou no famigerado freezer? Muitas vezes o mercadinho ou o supermercado está ao lado da sua casa ou no caminho do trabalho ou do lazer.

Tome consciência disso e nunca mais esqueça: vivemos dentro de um sistema global interligado, que funciona a base de poderosos algoritmos. As grandes corporações globais investem bilhões de dólares criando e aperfeiçoando esses algoritmos e eles são capazes hoje de prever toda sua vida de consumo!

Costumamos falar do capitalismo como algo cruel, porém julgamos que estamos fora da responsabilidade de como ele funciona. Mudar hábitos de consumo, tornando-os mais imprevisíveis dificulta muito as coisas para os programadores e desestabiliza o Sistema. E essa é melhor maneira de lutarmos contra ele. Evidentemente já não podemos mais viver fora dele, mas podemos influenciar a maneira como ele funciona. Acreditar que não temos força, como indivíduos para mudar as coisas é fazer o jogo que o Sistema espera de nós!

E a maldita geladeira é a espiã silenciosa do sistema, escondida em nossas casas. Pode parecer exagero, mas as redes de supermercado, assim como as demais redes de comércio de bens de consumo, conhecem mais do que nós todos os nossos hábitos. Sabem o que gostamos de comprar, quando compramos, as quantidades, as marcas e, principalmente o quanto estamos dispostos a pagar pelo que consumimos. E assim os preços são regulados. Para dar sempre a maior margem de lucro. Devemos vigiar o que colocamos em nossas geladeiras e na despensa.
Reprodução da página da ABIO – Associação de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro onde são informados os locais e datas das feiras de produtos orgânicos no estado do Rio de Janeiro. Fonte: http://abiorj.org/agenda-feiras-organicas-abio/ 

Dar preferência a produtos menos industrializados, comprar de empresas regionais que estejam mais próximas de nossas cidades, não ter receio de mudar de marca, comprar em datas incertas, diminuir as quantidades. Não comprar determinado item quando o preço está mais alto que o normal. Dar preferência a alimentos produzidos por agricultores e produtores orgânicos, de preferência oriundos de agricultura familiar e comunidades ecologicamente corretas. Todas essas medidas forçam os supermercados a diminuírem preços e estoques. E essas redes acabarão por pressionar seus fornecedores atacadistas, que por sua vez vão ter que se adaptar e buscar novos fornecedores de alimentos. E em determinado momento essa cadeia toda chega ao campo, ao pequeno agricultor  e mesmo aos grandes produtores que terão que rever suas estratégias de uso do solo e mecanização. Parece uma tarefa impossível, mas só se pensarmos que somos impotentes e escravos do sistema. Os sistemas podem coexistir e o farão, de maneira diferente, porque também querem sobreviver.

Já falamos da obesidade e da geladeira. E quanto a criar galinhas na varanda do apartamento? É mesmo necessário? Melhor não. Mas ainda sim temos escolhas. Para os que não se sentem bem e não se identificam mais com o padrão doentio da vida em cidades grandes e empregos tediosos, pode haver a opção da mudança para locais menores, empregos diferentes porém mais gratificantes. Podemos escolher, se gostarmos de viver em cidades verticais, entre comprar mais um apartamento para alugar e ter a falsa sensação de renda extra (talvez em outro artigo eu fale sobre isso) ou comprar uma pequena propriedade, um sítio ou uma chácara e começar uma produção artesanal de alimentos.

Pode ser um investimento para depois de nossa aposentadoria, pode ser um investimento com outros sócios. Podemos inclusive empregar nessas pequenas propriedades pessoas carentes. Mas por favor, sem exploração e com a visão de ajudar essas pessoas a progredirem também. Capacitando, ensinando, alfabetizando e as ajudando a terem no futuro suas próprias terras. Isso não se trata de utopia. Hoje já está acontecendo e eu conheço pessoalmente pessoas que estão nessa empreitada. Aliás o lado esperançoso de tantas notícias ruins ou desalentadoras, como o relatório sobre a fome que me inspirou a escrever esse artigo, é que tenho tomado conhecimento de que experiências desse tipo estão se tornando frequentes no mundo. Muitas delas conduzidas por gente jovem que, ao contrário do clichê, não são parte de uma geração definida por letrinhas e sem nada na cabeça.

Esse processo de olhar para nós mesmos, para nossos corpos, para nossas geladeiras, para a vida que levamos, se traduz em questionamentos. Muitos incomodam e dão preguiça. Pois ainda vivemos no sonho das comodidades. Mas depois que começamos, nossas mentes se abrem em novos entendimentos e passamos a enxergar que podemos mudar muitas outras coisas no mundo, além da relação com a comida e com a erradicação da fome. Afinal estamos ainda falando em modificar o primeiro degrau da famosa pirâmide de Maslow. E mesmo que por sorte e trabalho estejamos nós mesmos tentando resolver nossas necessidades em degraus mais altos, ajudando os que estão mais abaixo, nos facilita também a tarefa da subida. E quando todos nós seres humanos estivermos no mesmo degrau no topo, nosso peso concentrado lá achatará de uma vez essa perversa escala de desigualdades.  

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