segunda-feira, 22 de março de 2021

O inimigo invisível e uma guerra sem vencedores...



Durante séculos, senão em toda a história da humanidade, os gastos de recursos com a autodefesa, frente a qualquer ameaça a sobrevivência de nossa espécie, levaram a escolhas de como gerir os meios de subsistência, de forma a equilibrar esses recursos sempre limitados, na balança de sucesso ou fracasso na manutenção da vida. Numa comparação simplória, para os primeiros humanos, gastar materiais combustíveis para preparar alimentos ou iluminar a entrada do abrigo para afastar as feras, usar a madeira para fazer o fogo ou esculpir lanças, alimentar melhor os guerreiros e caçadores do que os mais velhos ou as crianças para garantir indivíduos mais fortes para a caça ou para a defesa do grupo deviam ser questões muito discutidas dentro das comunidades.

Essa equação permanece a mesma, milhares de anos depois. Não importando que hoje os recursos e conhecimentos de que o homem dispõe tenham se aperfeiçoado e multiplicado em uma escala quase inconcebível. Da fogueira a lança esculpida com pedras afiadas aos sistemas de vigilância por satélites ou mísseis balísticos intercontinentais, apesar do imenso conhecimento acumulado necessário para se conceber e construir esses sistemas e artefatos, a balança que deve regular os gastos entre defesa - em tempos de guerra ou paz - e o orçamento para manter a sobrevivência e a qualidade de vida de nossa espécie continua pendendo para um ou outro lado.

Diversos países ao longo da história chegaram a gastar tanto com armas e guerras que acabaram por sucumbir à miséria e fome de seu povo. Muitos outros apostaram no aperfeiçoamento das relações diplomáticas e doutrinas não beligerantes como forma de defesa. Com isso puderam investir os recursos que amealhavam no desenvolvimento da saúde, alimentação e educação de seu povo. Essa relação danosa ou positiva aparece em diversos graus em países com diversos níveis de riqueza. Temos países com elevado PIB e renda per capta com cidadão vivendo quase na miséria. Assim como o contrário. Mas esse medo atávico do desconhecido, do inimigo declarado ou oculto, assim como a inclinação a obtenção de mais poder e riquezas à custa de guerras, invasões e dominação de outros povos ainda subsistem na mente humana. Hoje em dia não apenas pela guerra real, mas, sobretudo pelas guerras comerciais. Dentro da essência do capitalismo, que regula a movimentação das riquezas, está implícita a necessidade da existência do combate, do orgulho de ser vencedor e da humilhação do derrotado.

Mas em 2020, no meio de discussões e insatisfações de muitas nações, organismos multilaterais e pensadores da cultura sobre as mudanças profundas nas relações entre nações, capital e desenvolvimento sustentável, como forma de evitar uma catástrofe futura, causada principalmente pelo desequilíbrio dos ecossistemas e as consequências climáticas, um inimigo desconhecido e inesperado nos levou a um estado de guerra mundial. A extensão e gravidade desse novo conflito mundial tem tal magnitude, envolvendo todas as nações do planeta, que seria equivocado a denominarmos de uma Terceira Guerra Mundial. Pois se trata de uma guerra onde o inimigo comum não é nem humano e não há uma nação hostil a querer dominar outros países. Para a denominarmos assim teríamos de numera-la como talvez a Quinta Guerra, sendo a primeira a Peste Negra do século XIV, a segunda a que a história conhece como a Primeira entre 1914 e 1918, a Terceira sendo a epidemia da Gripe Espanhola em 1918 a quarta de 1939 a 1945 (Segunda guerra Mundial) e a quinta atual pandemia de Covid19.

Mas tal classificação é inoportuna e desproporcional. Se olhássemos pelo número de mortos, a pandemia da Peste Negra foi a mais letal, seguida da Gripe Espanhola, da Primeira Grande Guerra, da Segunda e finalmente da epidemia atual. Quanto à destruição física de países inteiros e cidades, a Segunda Guerra foi a mais devastadora. Quanto ao critério do colapso econômico, talvez a Primeira Guerra tenha sido a mais danosa. Porque, inclusive, a miséria e a ruptura dos tímidos serviços de amparo social que estavam se estabelecendo ao final do século XIX, foram responsáveis pela disseminação rápida e descontrolada da gripe espanhola e as cicatrizes políticas e econômicas e o sentimento de vingança e reparação acabariam por fomentar, duas décadas depois, a Segunda Grande Guerra.

A epidemia de Covid19 não deixa, portanto de ser uma guerra. Mas trata-se de um conflito com características intrínsecas e, ao mesmo tempo, diversas, mesmo quando comparada às outras duas grandes pandemias. Penso que se trata de um resultado cumulativo de fatos e condições que remetem ao prato desiquilibrado da balança que apresentei no início desse artigo. Se fosse resumir de maneira simplista, diria que ela é o resultado do medo do inimigo desconhecido que morava nas trevas das noites dos homens das cavernas. A extrapolação de uma necessidade necessária e razoável de proteção da própria existência, levada a extremos pelos subterfúgios da mente sempre fantasiosa, por vezes irracional do ser humano. Sinto-me tentado a simplificar novamente meu pensamento falando de números. Os números das guerras. As reais e o confronto que o mundo trava contra um vírus novo e cheio de artimanhas.

Paradoxalmente o mundo entrou em uma corrida armamentista sem escalas após a Segunda Guerra Mundial. Fatias cada vez maiores do orçamento de muitos países eram solicitadas por presidentes e assessores militares para supostamente se prepararem para um possível terceiro conflito mundial ou simplesmente como forma de, mostrando poderio militar superior, dissuadir os inimigos a um ataque. Foi a época da guerra fria, que embora fosse liderada pelos estados Unidos e pela extinta união soviética, influenciou a política de defesa e compra armamentos de em diversos países. As tecnologias desenvolvidas durante a Segunda Guerra e posteriormente, elevaram o nível de sofisticação e letalidade das armas e sistemas de defesa. O custo desses equipamentos, devido à alta tecnologia envolvida cresceu consideravelmente. Os EUA até os dias de hoje foi o país que mais gastou e gasta seu orçamento interno com uma parcela significante de investimento em defesa e armamentos. Despende o triplo dos gastos feitos pela China, que ocupa o segundo lugar na economia global. Segundo levantamento de 2019 foram mais de 730 bilhões de dólares, cerca de 4% do PIB. A China vem em segundo lugar com 261 bilhões que representam cerca de 2,5% do seu PIB. O Brasil, apesar de aparecer sempre nos últimos lugares, em indicadores de desenvolvimento econômico e sociais mais importantes, e tendo caído do 6º para o 12º lugar no ranking dos maiores PIBs mundiais, aparece em 11º entre as nações que gastam mais com defesa e armamentos, superando países como Israel, Itália e Canadá. Em 2019 o total global estimado com gastos em defesa e armamentos chegou a quase 2 trilhões de dólares. Para comparação esse valor é maior que o PIB brasileiro. Se dividíssemos o valor total gasto no mundo com armamento e defesa pelo numero de habitantes do planeta, isso significaria cerca de U$ 250/ano por pessoa ou U$ 0,68 por dia. Atualmente, no mundo, cerca de 2,6 bilhões de pessoas vivem com menos de U$1,00 por dia.

 O mundo vem falhando sistematicamente há séculos em combater as desigualdades. Se antes do surgimento do pensamento humanista, que ensaia os primeiros passos no final do século XVIII, com as revoluções que interromperam os ciclos de privilégios dos feudalismos e dos regimes monárquicos, os séculos XX e XXI viram esses movimentos se tornarem mais ativos e terem mais voz. Mesmo com a facilidade de propagações de ideias e movimentos propiciados pela melhoria e agilidade dos meios de comunicação e o surgimento da internet, a desigualdade ainda está longe de ser resolvida. Os desmatamentos para atividades de mineração, agropecuária e exploração de recursos das florestas, visando suprir uma parte privilegiada da humanidade, fez o homem entrar em contato com doenças e patógenos que viveram milênios contidos nos reservatórios naturais dentro de áreas antes inabitadas.

A pandemia do Coronavírus é um desdobramento desse desequilíbrio. Há uma relação indireta entre as epidemias causadas por vírus de diferentes linhagens, como os causadores das gripes aviárias e suínas. Alguns pesquisadores teorizam que o abate em massa de aves e porcos para evitar a propagação entre as criações em diversos países levaram a redução da oferta de produtos in natura e industrializados provenientes desses animais. Na China se cogita que o consumo de animais silvestres aumentou durante e depois da gripe suína, levando os mercados, principalmente nas cidades do interior a ofertarem carnes de animais silvestres como o pangolim, do qual se suspeita terem vindo os primeiros casos de contaminação do coronavírus. O manuseio e consumo dessas espécies facilitou a passagem do vírus dessas espécies para humanos. A redução das florestas no sudeste asiático fez com que várias espécies de morcegos, hospedeiros primários de alguns dois oito tipos de coronavírus conhecidos, passassem a habitar as matas e casas das cidades próximas a essas áreas desmatadas.

No caso da síndrome Respiratória Aguda do Oriente Médio (Mers-Cov) o contato do homem com o camelo deu origem às primeiras infecções passadas de animais para humanos. As primeiras infecções surgiram na Arábia Saudita, país com longa tradição na criação de camelos.  Mas já foram detectados surtos no Quênia, país que atualmente tem a maior população de camelos do mundo. Mais uma vez o que levou pastores e agricultores daquele pais a intensificaram a criação desses animais foi o desequilíbrio do clima e a pobreza. As secas constantes naquele país africano dificultaram a criação de bovinos. Os camelos, pela resistência maior a viverem em ambientes sem oferta regular de água e sua longevidade, levaram a um maior investimento em sua criação. E em testagens realizadas nesses animais mostrou que, não apenas eles, mas seus criadores, já possuíam no sangue anticorpos para o Mers-Cov. O risco desse vírus causar uma pandemia preocupa cientistas que monitoram a doença. Camelos e morcegos são os hospedeiros conhecidos, mas pode haver outras espécies. A transmissão entre humanos já acontece. E a letalidade e taxa de transmissão é ainda mais alta que a do Covid19.

Com a pandemia atual de Covid, a ponta desse iceberg foi revelada. Existem muitos inimigos ocultos na natureza em desequilíbrio constante e progressivo que podem causar mais estragos do que o Covid19. E os gastos para combater esses inimigos e tentar ganhar essa guerra são desproporcionalmente altos. Segundo os dados ainda sendo compilados a maioria dos países, que tradicionalmente gastam as maiores somas em sistemas de defesa e armas, já gastaram ou vão gastar de 3 a 4 vezes mais recursos de seu PIB no combate direto a doença e em planos de recuperação econômica. O déficit nos EUA pode chegar a U$ 5,7 trilhões de dólares até 2030. A Inglaterra gastará só em 2021 mais de U$455 bilhões de dólares coma pandemia. No Brasil esse custo deverá ser de U$ 100 bilhões. Ou seja, o custo para combater um inimigo em uma guerra impensável há um ano, em todos esses países citados e, de modo geral, nas demais maiores economias do mundo, será cerca de 4 a 7 vezes maior que o custo em armas e defesa.

Nessa Guerra Mundial atual nenhum canhão será disparado. Nenhum míssil nuclear lançado, nenhum soldado dará um tiro. É uma guerra silenciosa, mas não menos mortal que as outras. Os danos a economia e programas de assistência social e financeira aos cidadãos, empresas e ao próprio sistema financeiro serão sentidos por décadas. A recuperação será lenta, pois os estragos atingiram todos os países do mundo. E não podemos esquecer que todas elas ainda estavam se recuperando ou permaneciam deterioradas pelos reflexos da crise global de 2008. O desafio é maior ainda quando se coloca na balança que os estragos causados ao meio ambiente e ao clima já faziam pressão em quase todas as economias do mundo para diminuírem ou alterarem os meios de produção e atividades econômicas mais poluentes para tentarmos salvar o planeta de uma catástrofe cada vez mais visível e eminente – a permanente alteração climática – que, segundo os mais pessimistas pode, muito mais que o Coronavírus ameaçar a existência da vida humana em nosso planeta.    

Penso que mesmo essa pandemia não vai alterar a forma de pensar e agir dos seres humanos e seus governos. O que mais se fala hoje é num retorno a um normal que nunca existiu e nunca poderá ser como era. Vejo com pessimismo a criação de uma consciência global de ajuda mútua que mude radicalmente a maneira como temos vivido. Um pacto para reconstrução do meio ambiente degradado, a erradicação da fome e da miséria, a diminuição da desigualdade entre os povos. Pensando em uma nova era de paz permanente entre os povos, mesmo o desvio total dos investimentos em defesa, armamentos e guerras não seria suficiente para resolver esses problemas. Mas já seria um caminho a seguir. Uma demonstração de boa vontade entre as nações em prol da segurança da nossa espécie.

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