Um
trabalhador de um crematório carrega madeira para a cremação de vítimas que
morreram de Covid-19 em terreno na margem do rio Ganges, em Allahabad em
27/04/2021. Foto: Ritesh Shukla/NurPhoto via Getty
Images.
A escalada da epidemia na Índia reforça duas constatações
cruéis e historicamente arraigadas na atual cultura global. A divisão do mundo
em castas e a desigualdade social. A pandemia de Covid19, ao contrário de
outras epidemias e doenças transmissíveis ou não, não poupa os mais ricos. Mas
com certeza atinge de forma desproporcional as populações mais carentes e
desassistidas ao redor do mundo. Durante décadas uma pequena parte da população
mundial se acostumou confiar nos seus sólidos sistemas de saúde, acesso a medicamentos
e recursos médicos avançados e a falsa noção de segurança de que catástrofes
sanitárias, como a atual epidemia de SarsCov2, teriam ficado no passado, como a
Gripe Espanhola, que dizimou muito mais vidas, em números absolutos e relativos,
que o vírus causador da Covid.
O mundo desenvolvido sempre virou as costas para a desigualdade dos países mais pobres. E mesmo em seus próprios territórios a pobreza e desigualdade social foi sempre camuflada, disfarçada e jogada para baixo do tapete da falsa pujança econômica. Talvez por isso tenham sido pegos de surpresa. Países com alto grau de desenvolvimento econômico estão sendo fortemente afetados e experimentando apagões em seus sistemas de saúde. Agora a Índia assusta o mundo com a escalada de uma segunda onda da pandemia sem precedentes em número de mortos e casos diários de contágio. O medo do surgimento de novas variantes mais contagiosas e letais e mesmo um senso humanitário, pautado por uma certa etiqueta internacional, que só se coloca em movimento em casos de grande repercussão midiática, começa a movimentar o envio de equipamentos, insumos médicos e profissionais de saúde para tentar auxiliar uma emergência, que pelo tamanho da população envolvida e as condições precárias de assistência hospitalar, parece ser uma tarefa sem chances de sucesso a curto prazo.
A realidade é que a Índia, o segundo país mais
populoso do mundo, ao contrário de seu vizinho, a China, parou no tempo no que
se refere a desenvolvimento social e distribuição justa da riqueza produzida
internamente. É um país de contrastes. Produzem e exportam produtos e serviços
de alta tecnologia, principalmente na área de programação e informática, lançam
satélites ao espaço, produzem quase 80% das vacinas usadas no mundo e outros
medicamentos em larga escala. Há uma minúscula elite econômica que retém a
quase totalidade do PIB produzido. São bilionários que controlam gigantescas
multinacionais. Mas os processos de produção ainda são baseados na utilização,
em regime de quase escravidão, da vasta mão-de-obra pobre e faminta, que aceita
trabalhar por migalhas.
As grandes favelas, as maiores do mundo estão dentro e
ao redor das principais cidades. Nelas famílias numerosas vivem em barracos de
lata, sem escolas, hospitais ou saneamento básico. Essas famílias, divididas
pelo abjeto sistema de castas, permanecem nessas condições a muitas gerações. O
sistema público de saúde é quase inexistente, as leis que regem as relações de
trabalho são diferentes, dependendo do regime político de cada estado e da
casta a qual pertença o trabalhador. Isso se ele pertencer a alguma. Pois mesmo
entre os sem casta, os dalit, ou como
o governo os denomina oficialmente “Scheduled
Castes”, também há separação entre castas mais ou menos favorecidas.
Assim, um trabalhador que limpa
fossas e recolhe excrementos humanos ou de animais é considerado inferior pelos
chandalas, a casta dos coveiros ou
trabalhadores dos shmashānas
(crematórios). Nesses locais considerados sagrados, hoje enfrentando uma
sobrecarga imensa pela quantidade de corpos a serem incinerados, vivem os dombas que são a casta de intocáveis responsável
por manter o fogo sagrado. Este é passado aos chandalas para que acendam as piras funerárias. Pela tradição hindu
o morto deve ser cremado somente com o fogo sagrado mantido pelos dombas, caso contrário, a alma não irá
ao paraíso. Um domba recebe cerca de
R$ 15 reais por cada corpo. Já o trabalhador que cuida da pira funerária, o chandala recebe menos, cerca de R$ 7,00.
Já o Brâmane que é de uma casta elevada, cobra cerca de R$ 1.500,00 para
recitar os versos sagrados durante a cerimônia e não corre riscos de
contaminação e nem é considerado impuro, pois não toco nos corpos.
Por conta de serem intocáveis, um
domba ou um chandala não podem, por exemplo, comprar uma motocicleta, pois
teriam que tirar a carteira de habilitação e nenhum instrutor ou autoescola
aceitam ter contato físico com eles. Por isso a cremação do corpo de um
cremador de corpos não pode ser feita no mesmo shmashāna (crematório) reservado para os mortos das demais castas. Esse
complexo sistema social baseados em castas que já existe a mais de três mil
anos, embora tenha sido eliminada pela constituição indiana quando da sua independência
da Inglaterra, ainda persiste fortemente na cultura e na tradição das famílias
e grupos religiosos.
O sistema de castas divide os hindus em quatro categorias principais: Brahmins, Kshatriyas, Vaishyas e Shudras. No topo da ordem hierárquica estão os brâmanes, que são principalmente líderes religiosos, professores e intelectuais; acreditam que são descendentes de Brahma, um dos deuses indús. Em seguida vem os Kshatriyas ou os guerreiros e governantes, supostamente criados dos braços de Brahma. Depois os Vaishyas, ou mercadores, criados a partir de suas coxas. E, por último, os Shudras, que vieram dos pés de Brahma e faziam todos os trabalhos braçais. Fora desse sistema de castas estão os Dalits ou Intocáveis. Na prática o sistema de castas é bem mais complexo, já que as castas foram divididas em mais de 3 mil outras castas e 25 mil sub-castas, cada uma com sua ocupação específica.
Essa divisão, que regula as oportunidades de ascensão social, cota de empregos, casamentos e acesso a benefícios sociais tem uma leve semelhança, no mundo ocidental, às entidades de classe, sindicatos de trabalhadores e mesmo organizações religiosas. Mas essa estratificação social baseada em “direitos” de sangue, nobreza, nacionalidade, profissão, escolaridade e quantidade de dinheiro que um indivíduo possui está presente em todas as sociedades. E de maneira similar ao sistema que ainda vigora na Índia, pode manter uma pessoa com o estigma da classe a que pertença, mesmo quando ela consegue subir, seja em grau de escolaridade, posição profissional ou acúmulo de riqueza. No Brasil poderíamos simplificar essa divisão em quatro grandes grupos. Brancos e negros, ricos e pobres. E dentro dessas quatro categorias, outros parâmetros como a identidade territorial (sulistas e nordestinos), profissão ou ocupação (políticos, ocupantes de altos cargos públicos, trabalhadores comuns, desempregados, etc.). Há ainda o preconceito e a divisão por orientação religiosa e de gênero.
Como na Índia, um indivíduo negro pode galgar os mais altos graus de educação formal, ter um excelente emprego e renda, ser um grande empresário, mas certamente vai ser em algum momento de sua vida, vítima de racismo direto ou velado. Direitos e privilégios também são exclusivos de certas categorias sociais, bem como a qualidade e distribuição dos serviços públicos e sociais. Os nobres dignitários de cargos públicos, como por exemplo, no Congresso Nacional, tem direito a um sistema privado de saúde de alto nível. Já a grande maioria dos trabalhadores comuns, que pagam seus salários e os demais benefícios exclusivos, sequer possuem plano de saúde. Têm que se resignar a morrerem à porta dos hospitais públicos sem atendimento ou dentro, pela falta de insumos fundamentais como oxigênio e medicamentos. Morar em locais sem as mínimas condições sanitárias e, na grande parte dos casos, sem a presença de serviços básicos de saúde, transporte e educação.
Se a Índia, um pai considerado extremamente espiritualismo, com milhares de mosteiros, de diferentes religiões, entre elas o Budismo, com milhares de anos de existência, ainda segue amarrado a um sistema de segregação cruel, estratificado e sem mobilidade social, o que dizer do Brasil? Um país bem mais jovem e sem tradições milenares próprias. Formado por uma amálgama de religiões e hábitos sociais assimilados de outros povos que aqui chegaram, em diversos períodos, muitos destes impondo uma cultura e religião que não eram a dos povos que aqui viviam? Povos com crenças por vezes mais humanas e voltadas ao coletivo e a preservação da natureza, que foram e ainda são dizimados ou obrigados a aceitar essas culturas exógenas como forma de sobrevivência? A Índia também sofreu esse processo, mas conseguiu se libertar do colonizador. Entretanto o estrago estava feito. O colonialismo baseado na supremacia branca europeia baseada em um regime monárquico, com sua divisão social encontrou um terreno fértil e adubado pela cultura estratificada e rígida das castas.
O povo hindu, acostumado a milênios de conformismo
e aceitação de seus direitos e deveres como forma de respeito a sua extrema
religiosidade, permaneceu apático. Os Marajás também aceitaram os colonizadores
como forma de garantir poder, ainda que limitados, status social e suas
fortunas. Exatamente como acontece em nosso país, desde os tempos do
descobrimento até os dias atuais. Vem-me a memória a fala do geografo Milton
Santos, quando falava sobre os mais ricos e a classe média muito diferente da
atual: “A globalização mata a noção de solidariedade, devolve o homem à condição
primitiva do cada um por si e, como se voltássemos a ser animais da selva,
reduz as noções de moralidade pública e particular a um quase nada”.
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