sábado, 1 de maio de 2021

A vacina Tríplice Viral (MMR) teria ajudado a frear a pandemia?

Nos primeiros meses da pandemia de Covid, em março de 2020, começaram a surgir nas revistas médicas, especializadas em publicar artigos científicos, os primeiros trabalhos mostrando evidencias plausíveis de que a imunização prévia com algumas vacinas, regularmente aplicadas em quase todo o mundo,  especialmente a MMR (no Brasil conhecida como Tríplice Viral) produziam forte resposta imune cruzada contra o vírus SarsCov2. Polêmicos, esses artigos foram alvo de revisão por pares ao longo do ano de 2020. hoje, passado um ano, quando se pesquisa o assunto "MMR and Covid" no Google, aparecem dezenas de trabalhos já publicados. Alguns são meta-análises de outras publicações. Em todos os trabalhos publicados, em suas conclusões finais, os autores ressaltam que é necessário o aprofundamento dessas pesquisas, com grupos maiores e métodos de controle científicos para confirmar os estudos iniciais.

A partir do segundo semestre de 2020 as notícias promissoras em relação a pesquisa e início da produção de várias vacinas específicas contra o vírus causador da Covid19 ofuscaram o interesse e talvez até o apoio financeiro para verificar a viabilidade de se usar vacinas seguras, amplamente disponíveis e já testadas e aprovadas a décadas para tentar conter a pandemia. A celeridade com que foram conduzidas as pesquisas e testes dos novos imunizantes para proteger contra o SarsCov2 e sua posterior aprovação para uso emergencial ou definitivo deu uma sensação de segurança a comunidade científica e a população mundial. Mas esse excesso de otimismo também se refletiu na previsão que se poderia fabricar em tempo recorde os bilhões de doses necessárias para imunizar toda a população mundial no espaço de tempo necessário para parar a doença e evitar o desenvolvimento das variantes perigosas.

Hoje vemos o mundo dividido em uma guerra de interesses econômicos e políticos e a falta de doses, principalmente para os países mais pobres. Os poucos laboratórios que podem produzir os novos imunizantes e as dificuldades logísticas para adaptar linhas de produção para dar conta da quantidade astronômica de doses tem feito os programas de vacinação, à exceção de alguns países, patinar no recebimento de doses e na inoculação nos prazos planejados. Os consórcios formados pela Organização Mundial de Saúde e parceiros de organismos de assistência humanitária também não conseguem fazer com que doses suficientes das vacinas cheguem aos braços dos mais pobres e com maior risco de enfrentarem uma pandemia que ainda não mostra sinais de trégua. Nesse contexto, seria possível que outros imunizantes existentes pudessem ajudar nesse combate? Será que, no futuro, a ciência perceba ter cometido um erro histórico, tendo deixado escapar uma solução efetiva e concomitante ao esforço que foi feito para livrar o mundo de uma das piores pandemias já registradas? Vejamos o que mostra um estudo, escolhido por ter sido um dos primeiros a serem publicados.  

No gráfico abaixo estão superpostos dados da pesquisa americana publicada na Sociedade Americana de Microbiologia (MBio), em 28/08/2020, com o título original “Analysis of Measles-Mumps-Rubella (MMR) Titers of Recovered COVID-19 Patients”[i], que relata a imunidade cruzada de indivíduos vacinados com a vacina tríplice Viral (MMR) contra o vírus causador da Covid-19 e as taxas de mortalidade pelo SarCov2 no Brasil. Outros pesquisadores em diversos países também vem publicando estudos parecidos. Os resultados são semelhantes. Basta uma pesquisa rápida na internet para achar mais de uma dezena de artigos com conclusões semelhantes. Em todos eles os autores são prudentes ao afirmar que os resultados são promissores, mas precisariam ser confirmados por estudos mais abrangentes e com maior número de participantes.



Todos deixam claro, nas conclusões finais, que as pesquisas não sugerem que a vacinação com imunizantes específicos para a Covid-19 deixe de ser fundamental, mas salientam que, ante a escassez atual de vacinas, insuficientes para imunizar toda a população, a demora na logística de distribuição e aplicação, a estratégia de aplicação de uma vacina alternativa (Tríplice viral), já amplamente utilizada, testada e disponível em grandes quantidades, poderia ser utilizada como reforço para as doenças a que se destinam e, como efeito secundário, garantir alguma proteção contra o novo coronavírus. A vacina Tríplice viral (MMR) já faz parte do calendário vacinal em dezenas de países, principalmente os mais pobres e afetados por epidemias de rubéola, sarampo e caxumba. Tem produção em larga escala e estoques regulares, além de preço irrisório, quando comparado ao valor das doses das vacinas contra a Covid19.

Pelo gráfico podemos ver que, tanto a incidência de casos nos Estados Unidos, quanto a mortalidade por faixas etárias no Brasil, são substancialmente mais baixas entre indivíduos com idades no intervalo entre um e quatorze anos de idade, seguidas de leve subida até os dezenove anos. No Brasil, dos 160 mil casos de óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), segundo dados do Ministério da Saúde, ocorridos no ano de 2021, houve apenas 325 mortes entre crianças e adolescentes na faixa etária de um a dezenove anos. Em recém-nascidos até um ano de idade foram registradas 158 fatalidades por SRAG. A partir dos 20 anos – e agora com as novas cepas em circulação – o número de internações e óbitos crescem acentuadamente, ocorrendo o rejuvenescimento da pandemia. A faixa etária dos 60 aos 69 anos é atualmente a que mais registra internações e mortes por SRAG. A partir da primeira semana de abril ouve uma queda perceptível no número de internações e óbitos de pessoas acima dos 80 anos. Provavelmente pelo efeito da vacinação desse grupo, que em sua maioria, já recebeu as duas doses das vacinas.

O padrão de número de óbitos maior entre pessoas mais idosas mudou. No Distrito Federal essa tendência é mais clara. A soma de óbitos das faixas entre pessoas entre 70 e 79 e acima de 80 anos foi menor que a soma total de fatalidades na faixa etária de 60 a 69 anos. Ainda no DF, segundo dados da Secretaria de Saúde, entre os 3491 óbitos por Covid no ano de 2021, houve apenas cinco mortes entre pessoas entre zero e 19 anos. Essa tendência também se observa no total de óbitos em todo o país. As diversas hipóteses levantadas para explicar essa discrepância acentuada na menor incidência de casos sintomáticos e óbitos entre crianças e adolescentes até os 19 anos, não são conclusivas e deixam lacunas. Mas nesse artigo quero focar em uma delas.  A teoria da provável imunidade conferida por outras vacinas, em especial a Tríplice Viral (MMR). Em resumo, as pesquisas realizadas até agora, todas fora do Brasil, mas em países diferentes, apontam algumas hipóteses:

  • A imunidade cruzada, onde o sistema imunológico fica mais fortalecido pela reação imunológica contra as doenças alvo das vacinas para outras doenças;
  •  A constatação, no caso da vacina tríplice viral, que os níveis de anticorpos contra uma das doenças para as quais a vacina foi projetada – no caso a caxumba – influenciam a proteção contra o SARsCov2;
  • Em relação a caxumba e o sarampo foram encontradas sequencias homólogas entre estas e as proteínas de fusão do Sars-Cov-2 e 29% de sequencias homólogas  de amino ácidos entre o vírus da rubéola e os macro domínios (ADP-ribose-1-fosfatase) do Sars-Cov-2, que poderia explicar um reconhecimento mais eficiente do sistema imunológico do vírus da Covid19 assim que ele entra no organismo;
  • Nesses estudos foi constatado que recém nascidos até um ano, adoecem mais que crianças a partir dessa idade. Exatamente porque elas só recebem a primeira dose de Tríplice viral aos 12 meses de idade (vide letra B no gráfico).
  • Após a primeira dose da tríplice as crianças adoecem menos de Covid19 e o número de mortes cai. Aos cinco anos as crianças recebem a segunda dose de tríplice viral (reforço) e a titulação de anticorpos específicos para a caxumba pode chegar a 300 AU/ml (letra C no gráfico). Esses níveis decaem gradativamente para valores de134 AU/ml (posição D no gráfico) em um período de nove anos. E exatamente a partir dessa idade começa o aumento dos casos de infecção grave e mortes pelo Sars-Cov-2;
  • Embora a queda na titulação de anticorpos não afete significativamente a proteção permanente da vacina tríplice viral para a prevenção das enfermidades a que ela se destina, a imunidade decai com a idade. Em muitos países são feitas campanhas de reforço quando surtos são detectados. Uma dose de reforço é oferecida a toda população afetada, com a finalidade de evitar o surgimento de uma nova epidemia. Recentemente no Brasil houve uma campanha de reforço que estendeu a aplicação da tríplice para pessoas até 59 anos;
  • Segundo o estudo citado, no início desse artigo, quando o nível de titulação de anticorpos para caxumba cai abaixo de 61 AU/ml, foi constatado que pessoas vacinadas com a tríplice viral passaram a apresentar sintomas leves de Covid, evoluindo para casos moderados e graves (menos de 8 AU/ml).Outros trabalhos científicos correlacionaram casos específicos, em diversos países e/ou grupos específicos, onde a incidência de casos e mortes por Covid19 foi inexistente ou teve menor intensidade, quando comparados com outras populações ou locais próximos, onde a pandemia está sendo mais grave e letal. O gráfico abaixo mostra essa correlação.

Portanto seriam necessários estudos mais aprofundados, duplo-cegos, com um maior número de participantes para demonstrar ou descartar essa hipótese. Infelizmente talvez não vejamos esses estudos. Na atual crise pandêmica, infelizmente e de forma antiética, estamos vendo uma corrida por pesquisas e produção de vacinas específicas para a Covid19 que estão gerando lucros de bilhões de dólares para diversos laboratórios. Vários artigos tem destacado a imoralidade da recusa desses laboratórios em abrir as patentes de fabricação das vacinas existentes, inclusive contra os pedidos da Organização Mundial de Saúde. Destacam a distribuição imoral de dividendos oriundos da valorização das ações desses laboratórios aos seus acionistas.

Como ressaltei no início desse artigo, talvez estejamos cometendo um erro histórico e desperdiçando uma oportunidade de mitigar o sofrimento de bilhões de pessoas, seja pela escassez da produção ou pelos preços cobrados pelos laboratórios, deixando de experimentar a aplicação de uma dose de reforço, em pessoas já vacinadas, ou o esquema de duas doses com intervalo menor em quem nunca tomou a tríplice viral. Essas pesquisas em relação a tríplice viral e prováveis efeitos protetores contra a Covi19 surgiram a mais de um ano. Uma campanha global de vacinação poderia ter sido iniciada no pico da primeira onda e poderia ter contribuído para conter as vagas subsequentes, a duração e os efeitos catastróficos em número de vidas perdidas e danos às economias ricas ou pobres do mundo que a pandemia já causou. E como foi citado por um dos pesquisadores, mesmo que não houvesse o efeito observado, nas pesquisas em pequena escala, contra o SarsCov2, pelo menos todos se beneficiariam com a proteção renovada contra o sarampo, a rubéola e a caxumba. Doenças que ainda causam milhares de mortes, principalmente nos países mais pobres, que ainda sofrem pela falta de vacinas mais simples e rotineiras, quanto mais agora pela tão disputada e escassa vacina para a Covid19.




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