Retrato à moda antiga...
As manhãs de domingo começavam cedo no
subúrbio. Desde as sete da manhã, donas de casa corriam apressadas ao aviário
para escolherem a melhor galinha para o almoço da família. Outras iam ao açougue do bairro comprar a
carne de segunda para o cozido. Nesse caso, que chegava um pouquinho mais tarde
pegava o segundo corte da chã, mais macio e com menos pelanca. Os homens mais
novos seguiam com chuteiras velhas no ombro, para o campo da pelada. Bermudas
pelo joelho, como convinha e camisa de meia.
Os mais
velhos - lá depois dos nove - iam se aglomerando em frente ao botequim do
portuga, para aguardar que esse levantasse as portas surradas, de metal pintado
de verde ou vermelho encarnado. Dispunham-se até a ajudar o velho a tirar os
engradados de madeira com a cerveja, que havia chegado de madrugada da frente
da porta principal e a colocar as pesadas mesas de pés de madeira trabalhados e
mármore branco, encardido do tempo, na beira da calçada.
Reuniam-se ali todo domingo, para o carteado
ou as partidas de dominó. A cerveja, não tão gelada pela velha câmara
frigorífica, com portas de madeira, adornadas com espelhos corroídos pela
humildade e seus trincos de latão, que faziam um som característico ao fechar,
ia sendo levada às mesas pelo menino que, nos finis de semana, ganhava uns
trocados dando uma de garçom. O portuga, atrás do balcão, tirava o lápis da
orelha e anotava em um caderno surrado, com caracteres indecifráveis, a conta
dos fregueses.
Gritava de vez em quando à cozinheira, sua
velha companheira, para vir mais uma porção de ovos cozidos de casca rosa ou
croquetes de carne. As conversas seguiam animadas, entre baforadas de
Continental sem filtro, ou um ou outro gole de conhaque. Cachaça mesmo, quase
não se bebia ao domingos. Era a bebida do trago rápido, durante a semana,
seguida do café requentado, para encarar o trem lotado para a Central, com a
marmita amarrada na trouxa de pano de prato.
Seu Valdemar, pedreiro de ofício, que não era
chegado a conversas no botequim, durante a semana de seis dias de trabalho,
passando à larga e recusando os convites para um copo, em dias de batente, no
domingo, se dava ao luxo de uma conversa fiada e uns copos de cerveja preta
Sulamericana ou Luzithânia. Tinha sete filhos. Alguns ainda pequeninos e
outros, mais velhos, quase na idade de se alistar, que o ajudavam nas obras. A
medida que os rapazes completavam o primário, iam se incorporando nas
empreitadas do pai até servirem. Depois, que procurassem seu rumo na vida.
João, de dezesseis anos quase completos, era
meio avesso ao serviço pesado da obra. Tinha pedido ao pai para continuar estudando,
uma noite no jantar, mas levou uma bofetada no rosto. Mas não guardava mágoas
do pai. Sabia o duro que o velho dava para alimentar as nove bocas da família e
pagar os livros e cadernos dos mais novos. Haviam também as fardas e as roupas
de domingo. Fora o par de sapatos de cadarço, que cada um ganhava no Natal e
que tinham que durar o ano todo. João também gostava de música. Aos domingos se
reunia com outros rapazes, no coreto da pracinha, para tirar ao violão, as
modinhas do rádio.
Um domingo, passou pelo botequim e ao avistar
o pai, sentado com mais dois amigos, foi logo puxando uma cadeira e sentando.
Sua benção meu pai. Deus te proteja meu filho, respondeu Valdemar com cara
amuada. João pediu um copo ao galego e se serviu de uma garrafa de Antarctica,
que já estava pela metade. E ficou ali, escutando as histórias dos mais velhos.
Ao dar onze horas, se despediu, levantou e foi para casa, ajudar a mãe com as
tarefas de domingo e verificar os cadernos
dos irmãos e irmãs mais novos.
Seu Valdemar, meio-dia em ponto, pediu o
pendura, se despediu dos amigos e colocando uma garrafa de Sulamericana e duas de guaraná-champanhe, na bolsa de lona, que
trazia dobrada em baixo do braço, tomou o rumo de casa. Meio trôpego, mas
tomando cuidado para não deixar os vizinhos notarem. Afinal não caia bem para
um homem de respeito. Antes passou no armazém e pagou o fiado da semana,
entregando já ao balconista, a lista da semana, que mais tarde seria entregue,
de triciclo, por outro garoto das redondezas, que também fazia bico na casa de
secos e molhados.
O almoço transcorreu como de costume, com dona
Dalva servindo a galinha ensopada e macarrão aos menores, que nunca podiam
escolher as partes da penosa que mais gostavam. Comiam o que a mãe lhes desse.
Os mais velhos esperavam o pai se servir, para depois disputar o que lhes
interessava. Seu Valdemar sempre ria calado nessa hora, mais admirando e se
orgulhando da família ao redor da mesa. Gostava também de ouvir, no velho rádio
a válvulas, o programa de calouros do Ari Barroso. Não perdia a Hora do Pato por
nada.
Os mais novos riam das vozes desafinadas que
saiam pelo alto-falante e de vez em quando levavam bronca do pai, que não
gostava de algazarra. Mas naquele domingo, nem prestou atenção à troça dos
miúdos. Estava mais sério que de costume. Dona Dalva, que já conhecia o marido,
assuntava desconfiada na cozinha, enquanto areava as panelas com sapólio, o que
teria acontecido. Mas não iria falar nada com o companheiro, pois sabia que em
alguns assuntos, não havia de se meter. Que ele lhe falasse se quisesse.
A semana toda João só ouviu resmungos do pai,
quando lhe perguntava sobre alguma tarefa ou mesmo comentava o jogo de futebol
onde o Vasco havia ganhado da Portuguesa por 2 a 0. No sábado, ao receber a
mesada, pela ajuda da semana, estranhou o valor e foi falar com o velho: Pai...
faltou oitenta tostões no meu pagamento. Pagamento não! Respondeu o pai. Que
você ainda nem serviu ao exército e não sabe o que é trabalho. Está tudo aí. E
é só isso que você vai ter até o próximo sábado.
Mas vai faltar dinheiro para o bonde para eu
vir trabalhar. E nem para a matinê do cinema. Está levando um filme novo e eu
quero assistir. Valdemar finalmente explodiu a raiva contida durante toda a
semana e segurando o filho pelo braço, enfiando os dedos grossos e calejados, no
muque do rapaz, começou a bronca. Quem te deu ordem para sentar na mesa onde eu
estava, no domingo passado? Alguém lhe convidou? Eu te chamei para tomar um
copo de cerveja? E onde já se viu um pirralho de sua idade bebendo e se metendo
na conversa dos mais velhos?
Tinhas dinheiro para pagar a despesa? Ali é
tudo rachado entre os que estavam sentados. Se não tens dinheiro ou idade para
beber, não se atreva a fazer mais isso. Já não basta andares aos domingos com
aquela viola de merda em baixo do braço, feito um malandro. Já te disse que se
queres tocar, que toques em casa para tua mãe e teus irmãos. Viola e botequim
não faz ninguém ganhar a vida.
Eu dividi a conta por quatro, ao invés de três
e já deixei a tua parte paga, que não quero filho meu pendurando conta em
caderno. Já basta eu e tua mãe. O valor
da tua parte eu descontei da mesada. Assim aprendes.
João, tão logo teve o braço dolorido solto
pelo pai, se afastou para um canto da obra, amuado e vermelho de vergonha, pelo
vexame passado na frente dos irmãos mais velhos e os outros colegas de
trabalho, e ficou matutando como iria fazer para pegar o bonde a semana
inteira. Quanto ao cinema, esse já estava perdido mesmo, pois o pai
provavelmente lhe proibiria de ir, mesmo se dona Dalva, sempre pronta a acudir
um filho, lhe emprestasse algum. Mas não ficou com raiva do pai. Afinal a vida
era dura para o velho.
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