quinta-feira, 17 de abril de 2014

Sobre crianças famintas e minhocas: O "mau estar" da foto...

Periódico inglês cria mal estar e sofre críticas por uso de imagem comprada em banco de fotografias comerciais.

Uma interessante questão ética e moral pode ser levantada a partir de duas matérias publicadas no periódico inglês The Guardian. Na edição de 17/04/2014, Roger Tooth, responsável pelo blog de fotografia do jornal, condena o uso de uma imagem, dessas compradas em bancos de fotos, pelo concorrente Daily Mirror, para ilustrar uma matéria sobre o número alarmante de crianças que podem estar passando privação alimentar na Inglaterra. No que ele chamou de “jornalismo preguiçoso”, critica o concorrente por não ter usado uma foto real de uma criança inglesa em situação de risco, preferindo o jornal, ter usado uma foto de uma criança americana com alterações artísticas criadas com Photoshop.


O blogueiro alega que além, de não corresponder a situação real das crianças inglesas, a foto original foi alterada para parecer mais dramática e criar interesse no leitor. A foto original está disponível no Flickr (https://www.flickr.com/people/laurenrosenbaum/) e trata-se de imagem da filha da fotografa e dona de casa Laureen Rosenbaum tirada em San Francisco, EUA, em 2009, no momento que a criança chorava por ter perdido sua minhoca de estimação, a quem a menina tinha dado o nome de Flor. O post de Roger Tooth pode ser lido no endereço http://www.theguardian.com/media/photography-blog/2014/apr/17/mirror-weeping-child-picture-lie-lazy-journalism.

No mesmo The Guardian, na edição do dia anterior, outro articulista, Andrew Brown, escreveu em seu blog matéria sobre o mesmo assunto. Mas o tom e a ótica eram completamente diferentes. Em seu texto, que pode ser acessado no link http://www.theguardian.com/commentisfree/andrewbrown/2014/apr/16/daily-mirror-weeping-child-lie-food-banks, o articulista considera irrelevante o dilema ético em que se envolveu o Daily Mirror, com milhares de leitores indignados pela “fraude” na foto da capa. Ele chama atenção para o fato de que qualquer imagem de crianças passando fome poderia ser usada como uma metáfora. E que a gravidade do problema da falta de segurança alimentar para qualquer indivíduo, não importando a nacionalidade, é que deveria indignar o leitor consciente e que o uso da imagem de uma criança inglesa, afetada pelo problema da fome na Inglaterra, seria mais adequado para convencer uma parcela da população que não acredita que haja crianças famintas na terra da Rainha Elizabeth.

Mas vejo esse episódio com uma perspectiva diferente. Claro, que como fotógrafo, condeno veementemente o uso de imagens manipuladas, sem o consentimento do autor e, mais ainda, imagem comprada de bancos de fotos comerciais. Muitos repórteres fotográficos já perderam a vida para denunciar, através de suas lentes, as injustiças sociais e as tragédias que se abatem sobre pessoas em situação de perigo. Vou mais longe. Segundo a escritora americana Suzan Sontag (1933-2004), em seu excelente livro Sobre fotografia (São Paulo: Companhia das Letras, 2004.ia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004), no que chama de  “maldade da foto”, a intencionalidade de ferir o cotidiano, pelo aprisionamento do momento fotografado, acaba por levar à banalização do mal e das tragédias diárias (SONTAG, 2004, p.23), levando o expectador a se dessensibilizar pelo “desgaste da realidade” (2004, p.31). 

Quanto mais fotos, sejam verdadeiras (foto jornalismo) ou posadas, comerciais ou artísticas, são expostas em galerias, mídias diversas ou redes sociais, retratando situações de violência que qualquer tipo, são apreciadas e compartilhadas, mais a violência que elas denunciam se torna banal.  A criança esquálida e faminta na África, transformada em produto de arte, por fotógrafos diletantes, que desejam apenas fama e recompensa financeira, em nada se beneficia da divulgação de sua imagem. Pelo contrário. Ao virar ícone ou obra, fica condenada, como o tempo que sua foto aprisionou, à perpetuação de sua miséria. A foto real choca, a pose atenua o mal estar do olhante.

Marcelo Ruiz

Abril de 2014.

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