segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Torcendo contra...

 


Que no Brasil somos especialistas em fazer apostas duvidosas, isso sabemos. A ver as últimas eleições presidenciais. Torcemos contra nós mesmos. Seja nas escolhas políticas, seja em tantas outras estratégias, das mais simples as mais complexas. Culpamos quase sempre os governantes e as diversas esferas do sistema. Aliás, esse tal Sistema – que grafo assim mesmo com maiúscula – parece uma espécie de deus ou de entidade superior na nossa cultura. Tudo que dá errado é atribuído a ele. O caso mais simples? Só experimentar ligar para algum serviço de tele atendimento. Tudo que der errado, tudo que não estiver disponível é culpa dele.  Com a pandemia não é diferente. Depois de um ano de pandemia, ainda não conseguimos planejar, gerir, aceitar e principalmente fazer cumprir estratégias básicas. Sejam pelos governantes, entes públicos e, principalmente, pelos cidadãos.

A mídia, sempre antenada, para o bem ou para o mal, nesse jogo de interesses onde vive metida, capta com precisão esses sentimentos e tendências e seu discurso e texto passa a refletir essas visões. Lendo o jornal local me deparo com a manchete da foto que ilustra esse texto. Mais adiante, no início da matéria, leio a seguinte pérola: “O país deve atingir a marca de 240 mil mortos nesta terça-feira (16/2), já que o Brasil precisa de (sic) confirmar mais 227 perdas para a covid-19, número que normalmente é superado nos boletins diários atuais”. Além da preposição inadequada, o menor dos males do texto, a frase toda remete para uma espécie de torcida às avessas pelo atingimento de uma marca ou recorde, que infelizmente, para piorar, não é fixo. Mas parece que, nesse momento em que escrevo, a marca de 250 mil vidas perdidas deve ser algo muito importante. E é mesmo. Mas não no sentido que o tom dos boletins diários alardeiam nos noticiários.

Cem mortes, mil mortes, dez mil, cem mil ou, quem sabe, um milhão? Qual será a meta que estamos tentando alcançar? Parece que esses números tristes, absurdos e desnecessários desencadeiam uma espécie de torcida destorcida no inconsciente das pessoas. Nem o governo e nem uma grande parte dos cidadãos não se sensibilizam e não tem a menor consciência do que os números a que chegamos representam. Apesar de estarmos no terceiro lugar mundial em número de casos e em um triste segundo lugar no número de mortos, as medidas sanitárias foram afrouxadas, os recursos terapêuticos básicos, como oxigênio, faltam em capitais e cidades menores, a testagem e rastreio é ineficiente, a detecção de mutações do vírus por sequenciamento genético é pífio e as vacinas são aplicadas a conta-gotas e sem previsões concretas de quantidades e prazos de entrega dos diversos fabricantes.

Do lado do Estado houve erros de planejamento e descaso que beira o genocídio. Do lado do povo o descaso com a vida própria e, principalmente pela vida alheia, também chega a beirar, se não a completa inconsequência egoística, uma tentativa de homicídio. Sem exageros. Diariamente vemos o desrespeito ao próximo na falta de uso de máscaras, falta de distanciamento social, festas e comemorações desnecessárias e mesmo as clandestinas, saídas desnecessárias para locais onde o risco de contágio é alto e negação da crise pandêmica e mesmo das vacinas. E quem tem pagado o preço mais duro são os idosos. Exatamente eles, que tendo lutado e trabalhado uma vida inteira para chegarem ao tempo do descanso justo, tem morrido como moscas nessa pandemia.

Em média, no Brasil e na grande maioria dos países, as pessoas com mais de 70 anos representam 80% dos mortos. No Brasil essa faixa etária, que vai dos 70 aos mais de 100 anos, representa apenas 5,4% da população. No entanto, nas estatísticas da pandemia, já devem somar hoje, ao chegarmos a triste cifra dos 250 mil óbitos, ao total de 200 mil vidas perdidas para o Covid. E essas pessoas são as que deveriam ser as mais protegidas e cuidadas, não só pelo Estado, mas por seus próprios familiares. São pessoas que, na sua grande maioria, já não trabalham, não frequentam baladas, não se expõem desnecessariamente. Quando muito, vão ao supermercado ou farmácia, se não tem outros parentes ou cuidadores para fazer essas tarefas. No entanto, o grupo de pessoas mais infectadas pelo Covid no Brasil se situa na faixa etária dos 20 aos 39 anos, respondendo por quase 46% dos casos. Paradoxalmente o número de mortos nessa faixa etária fica no patamar de 3.2%.

E são esses indivíduos que mais interagem socialmente, seja por razões de estudo, trabalho presencial ou simplesmente nos encontros sociais desnecessários. Estamos falando em um universo de 25% da população brasileira, ou cerca de 68 milhões de pessoas. Aplicados os 3,2% da taxa média de mortalidade para esse grupo, vemos que até agora foram cerca de 8 mil óbitos entre 68 milhões de vidas. No grupo das pessoas com 70+ anos, cerca de 8 milhões, tivermos 200 mil óbitos. Ou uma morte a cada 40 pessoas. Na faixa dos 20 aos 39 anos houve uma morte para cada 8500 indivíduos. Essas percentagens parecem seguir um padrão em muitas partes do mundo. Para além do sofrimento de tantos milhões de famílias que perderam seus entes idosos queridos, o problema social que isso representa em economias frágeis como a do Brasil e outros países pobres ou em dificuldades econômicas e índices de desemprego elevados isso representa um outro grave problema econômico.

Aqui e em muitos outros países, esses mesmos idosos que estão falecendo em números desproporcionais muitas vezes compareciam com o sustento e ajuda a filhos, netos, sobrinhos, cônjuges e outros parentes em dificuldades financeiras. Pela maioria das leis previdenciárias, à exceção de poucos casos, o pagamento das pensões por aposentadoria, invalidez ou doença pagas a esses idosos ajudavam a mitigar a falta de renda de outros membros dessas famílias. E falecendo o titular, essas pensões deixam de serem pagas pelas previdências sociais públicas ou privadas. As ajudas financeiras, quando pagas, por diversos países durante a pandemia, ou já terminaram, como no caso do Brasil, ou são insuficientes para suprir as necessidades básicas das pessoas que perderam emprego e renda durante a pandemia.

Portanto mesmo depois de debelada a pandemia globalmente, ainda teremos anos a frente de outras crises graves como o desemprego e a fome. Essas levarão anos para serem debeladas. Se de fato o forem, já que mesmo antes da pandemia, a maioria dos países do mundo já lutavam contra as crises econômicas que os assolavam a anos, o desemprego, a pobreza e a fome.  Penso, usando uma forma bastante pragmática ou mesmo perversa, que os mais jovens que se arriscam desnecessariamente, mesmo sabendo que tem em casa idosos que muitas vezes garantem seu sustento, não se importam de talvez estarem matando suas “ galinhas dos ovos de ouro”. No Brasil, por exemplo, dificilmente um a pensão da Previdência Social ou dos fundos de pensão privados passa para dependentes maiores de 18 anos. Em alguns poucos casos apenas uma percentagem destas podem ser pagas aos dependentes que estejam ainda cursando universidades, mas até a idade de 24 anos. Aqui, como em muitos outros países, muitos adultos e crianças dependiam da renda de aposentadoria de parentes mais velhos para garantirem um mínimo de condições de sustento e, segundo pesquisas demográficas, uma grande parte de idosos se declararam como cabeças de família em termos de renda familiar.

Como disse em outro trecho desse texto, isso é uma situação imoral e injusta. Fico pensando nas preocupações que muitos idosos levam para seus leitos de hospital quando são acometidos pela Covid. Talvez muitos, detentores de uma fibra e senso de responsabilidade que só se adquire com a idade e as lutas dos longos anos de vida, pensem mais, nos últimos minutos antes de serem entubados e perderem a consciência, sem saberem se sobreviverão, no  medo de deixar seus parentes desassistidos do que na própria morte.



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