quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Farinha pouca, meu pirão primeiro...

 

O ditado popular é antigo. Mesmo já estando fora de moda, na linguagem dos mais novos, reflete uma triste verdade.  Mesmo em tempos de catástrofes, como a que o mundo vive agora, o egoísmo e a ganância não dão tréguas. É inato a todas as espécies vivas, em momentos de grande perigo ou escassez de recursos, querer sobreviver a qualquer custo. Seria razoável pensar que, pelo menos na espécie humana, por conta da razão e da inteligência emocional, esse tipo de comportamento fosse diferente. Não é o caso. Como no naufrágio do navio Titanic, que por economia e excesso de confiança dos construtores, tinha muitos  menos botes salva vidas do que a capacidade total de passageiros, o que se viu  foi os mais ricos, mais fortes e mais espertos embarcarem primeiro. Conta à história que alguns botes foram baixados ao mar com lugares sobrando. A maioria dos passageiros com bilhetes mais baratos morreram na tragédia. A arrogância do capitão – e toda semelhança aqui não é mera coincidência – em seguir viagem, mesmo com nevoeiro e avisos de icebergs na rota, levou ao desastre.

Agora, no momento que o mundo precisa de muitos milhões de doses de vacinas – na verdade bilhões – alguns países tem estoques de vacinas já recebidas ou encomendadas, suficientes para vacinas várias vezes todos os seus cidadãos. A grande maioria, no entanto, segue sem previsão de receberem as primeiras e escassas doses que sobraram. Farinha pouca meu pirão primeiro. Do outro lado da balança, que pende sempre para os mais ricos e para o capitalismo selvagem, estão os fabricantes europeus que parece que andaram vendendo e cobrando adiantado por milhões de doses que prometeram entregar, mas que não tem capacidade industrial de produzir no tempo contratado. Mesmo assim a distribuição do pouco que é produzido não segue parâmetros justos.

Mesmo nesse cenário, há sobras de vacinas da AstraZeneca. Quando se fala em vacinas, parece não existir um consenso mundial sobre sua aplicação, tanto no que se refere a campanhas maciças, quanto a programas regulares ou inoculação para certasdoenças. Em diversos países há inclusive uma forte rejeição ao uso delas.  Dados de 2018 mostram que em alguns países, como a França, por exemplo – que tem o índice mais alto de desconfiança sobre a segurança das vacinas – essa rejeição pode chegar a 33% da população pesquisada. Mesmo agora, com elevado número de casos e mortes pelo Covid, os franceses não estão muito interessados em serem vacinados. E em diversos países há protestos inclusive quanto aos confinamentos ou uso obrigatório de máscaras. E agora surge a desconfiança sobre a eficácia de algumas delas em relação à população de idosos. E isso tem feito com que sobrem doses preciosas de certos imunizantes.



Pior que a falta de vacinas para todos é o desperdício de doses que, segundo as últimas informações, seguem estocadas sem uso nos centros de distribuição em diversos países da União Europeia. É o caso da vacina de Oxford, produzida pela AstraZeneca. Não que haja falta de logística para distribuição ou aplicação ou vontade política dos governos em vacinar a população. Como acontece aqui. Mas pela própria rejeição e ceticismo da população em receber as doses. No momento em que escrevo esse texto, por exemplo, a Alemanha possui em estoque 1.452.000 doses da vacina Covishield (AstraZeneca). Doses que já foram distribuídas aos centros de vacinação, mas permanecem nas geladeiras. Efetivamente, apenas 189.206 doses foram aplicadas. Em outros países da Europa, em porcentagens menores de estoques e doses aplicadas, a situação é a mesma.

A confusão toda começou com uma notícia equivocada de um jornal alemão que interpretou os dados de eficácia da vacina nos idosos. Quem escreveu a matéria alegava que a eficácia seria 8% no grupo acima de 65 anos, quando na verdade o valor de 8% seria o número de pessoas, acima dessa idade, que receberam a vacina durante a fase de testes. Embora a Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês) já tenha recomendado a aplicação da vacina para pessoas com mais de 18 anos, incluindo idosos, as comissões de vacinação de alguns países, incluindo a Alemanha, optaram por não recomendar seu uso em indivíduos acima de 65 anos. Mesmo sendo consenso oficial da Agência Europeia. Diversos especialistas no assunto, e o fabricante, afirmam que a vacina de Oxford é tão eficaz quanto as demais em idosos, porém o consenso entre o público é de desconfiança.

Para países como a Alemanha, o fato de sobrarem quase 1.200.000 doses de vacina sem uso não parece ser um problema, já que possuem acordos robustos de compra de outros fabricantes como a Pfizer e a Moderna. Mas enquanto sobram doses da vacina de Oxford por lá, aqui no Brasil há falta dessas mesmas vacinas. Essa semana (23/01) chegaram apenas 2 milhões de doses prontas que são insuficientes para vacinar toda a população de pessoas acima dos 65 anos. Não é suficiente nem para vacinar todos acima de 75 anos. Já que alguns países europeus optaram por não usar a vacina da AstraZeneca em seus cidadãos, porque não doam essas doses para países sem condições econômicas de comprarem essa ou qualquer outra vacina? Questão humanitária. Aqui, nossos idosos estão bastante felizes em receber qualquer vacina, em virtude do medo e do desespero que a tragédia de uma pandemia, sem controle e sem gestão racional e eficaz de um governo despreparado, ceifa milhares de vidas por dia.  

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