Mesmo quando o mundo enfrenta um problema sério e comum a lógica do capitalismo globalizado e sem fronteiras e os interesses políticos se colocam acima do bem comum que é a saúde dos habitantes do planeta. Vidas humanas e a obrigação ética da solidariedade não tem vez quando o dinheiro e o poder falam mais alto. A indústria farmacêutica sempre soube que vacinas não são um bom negócio. Vacinas são geralmente baratas e aplicadas uma ou duas vezes em cada indivíduo. Ao contrário, remédios mais caros, principalmente os mais modernos, serão usados muitas vezes por cada paciente. Lucro de bilhões de dólares garantidos. Vacinas, principalmente voltadas para doenças que afetam os países mais pobres são sempre subsidiadas por governos e instituições filantrópicas. Só dessa forma o custo de pesquisa e produção e os riscos de eventuais fracassos passam a interessar os fabricantes de medicamentos.
Muitas doenças e epidemias foram controladas e mesmo erradicadas no planeta desde a invenção das primeiras vacinas. Dessa forma as quantidades hoje necessárias são bem menores, usadas em campanhas de reforço ou durante o surgimento de focos de certas doenças. A consequência desse desinteresse em um produto que não dá lucro fez com que muitas fábricas de vacinas fossem fechadas em vários países. Países como a China, a Índia e mesmo o Brasil se tornaram então grandes produtores e exportadores de vacinas, principalmente para países mais pobres e mesmo para as altas demandas locais. Isso só foi possível com apoios financeiros governamentais em pesquisa e compra garantida da maior parte da produção.
Os laboratórios multinacionais
que negociaram patentes ou cederam tecnologias o fizeram, como disse antes, por
falta de interesse em manterem a produção em fábricas que seriam mais rentáveis
produzindo medicamentos de uso contínuo, mais caros e com grandes margens de
lucro. Esse fato nos leva a atual pandemia de Covid, onde países ricos como a
Alemanha, os Estados Unidos e a Inglaterra, apesar de ser sede de grandes
laboratórios de pesquisa e produção de medicamentos, estejam agora tendo que
depender de outras nações para obterem as quantidades milionárias de doses dos
novos imunizantes que necessitam com urgência. De acordo com os últimos dados
da OMS, mais de 700 milhões de doses já foram administradas pelo mundo. Mas 87%
delas foram para os países ricos e as grandes economias emergentes, entre elas
o Brasil. Já os países mais pobres do mundo receberam apenas 0,2% das vacinas.
Alguns países com grande poder econômico
chegaram a fechar contratos de compra de vacinas suficientes para imunizar quatro
vezes o total de sua população. A guerra de vacinas e a forma desigual de
distribuição que estamos vendo hoje no mundo todo, prejudicando principalmente as
nações mais pobres, é resultado direto dessa logica perversa de mercado. Hoje
nenhum laboratório detentor das patentes das novas vacinas contra o SARSCov2
aceitam abrir mão das patentes e dos ganhos com direitos intelectuais. Os
acordos e contratos firmados entre estes e grandes fábricas da China e da Índia
prevê que parte da produção tenha que ser enviada para os para os países ricos
detentores das patentes. Além disso, o preço final dessas vacinas é determinado
pelos acordos comerciais envolvidos e pela lógica gananciosa de lucro. Afinal
essas empresas são controladas por grandes investidores que negociam suas ações
no mercado financeiro.
O caso mais emblemático na crise
atual de escassez de vacinas que afeta não apenas o Brasil mas mesmo as
economias mais poderosas do mundo – e aqui vale ressaltar que não se trata de
quantidades adquiridas, mas da capacidade dos laboratórios em entregar o que
venderam – é o da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford. Inicialmente
a instituição havia declarado que iria ceder a patente para qualquer empresa
que quisesse fabricar o novo imunizante descoberto. Um acordo inicial foi
firmado com o Instituto Serum da Índia. Mas poucos meses depois, em uma
reviravolta surpreendente veio a notícia que a AstraZeneca havia obtido um
acordo de exclusividade de comercialização e produção firmado entre a
Universidade De Oxford e uma startup criada dentro da universidade por um casal
de cientistas pesquisadores, que foi financiada com verbas públicas da
Universidade e de fundações como a de Bill Gates (Bill e Melinda Gates Foundation),
chamada Vaccitech.
O acordo inicial entre a
universidade inglesa e a empresa indiana de vacinas, foi alterado pela
AstraZeneca de modo a dar poderes a esta última para gerir a exportação e
determinar o preço de venda das vacinas. Pelo acordo, metade da produção poderia
ser comercializada pela AstraZeneca para países fora do consorcio global de
vacinas Covax Faccility. Isso diminuiu pela metade a oportunidade dos 92 países
pobres que assinaram o acordo capitaneado pela OMS. Para piorar as coisas o
governo indiano declarou como de interesse soberano o bloqueio parcial de
exportações das vacinas produzidas pela Serum para atender a campanha de
vacinação interna. A Índia tem hoje o terceiro lugar em número de mortos pela
pandemia e luta com um aumento crescente de casos.
O Brasil também está sendo
prejudicado por esse bloqueio de doses prontas e também pela dificuldade de importação
do ingrediente ativo (IFA) para a produção de doses pela Fiocruz, que tem tido
problemas também com a linha de produção e envaze. O problema se reflete também
nos países europeus, com a União Europeia pressionando a AstraZeneca a entregar
as doses prometidas e já compradas pelos países membros e agora proibindo a exportação,
para países fora da comunidade, das vacinas produzidas nas plantas fabris
situadas na Holanda, Bélgica, Itália e Alemanha. Mesmo a Inglaterra que possui
uma unidade de produção e que saiu recentemente do grupo de países membros, tem
sido pressionada a exportar para a Europa parte da produção. Pelo que se vê hoje, parece claro que quase
todas as farmacêuticas com vacinas prontas ou em fase final de testes andaram
fazendo promessas de prazos de entrega e volumes que não conseguem cumprir.
Por outro lado, países que
apostaram na vacina Coronavac produzida na China, como o Brasil, Chile, Turquia
e Indonésia, também enfrentam dificuldades para recebimento de doses compradas
e, no caso brasileiro, de recebimento do ingrediente ativo (IFA), para produção
local (pelo Instituto Butantã) por conta da pressão do governo chinês sobre a
fabricante para que a produção seja priorizada para o programa interno de vacinação.
Na União Europeia alguns países membros pressionam para comprar diretamente da
Rússia a vacina Sputinik V, mas enfrentam o ceticismo da Agencia Europeia de
Medicamentos em aprovar o imunizante. A relutância se deve não apenas a desconfiança
da veracidade e transparência dos estudos clínicos como também por questões
diplomáticas envolvendo o bloco e o presidente russo Vladimir Putin.
Aqui no Brasil, questões
políticas e burocráticas também emperram o acordo firmado entre a empresa farmacêutica
União Química e o Fundo Soberano Russo para iniciar a produção local do imunizante
e compra de doses prontas. Em resumo, em todo o planeta se vêm questões
financeiras, políticas e científicas prejudicado bastante a distribuição
igualitária e acessível financeiramente para que as vacinas já disponíveis
cheguem aos braços dos cidadãos aflitos por se protegerem da catástrofe da
pandemia. E quanto mais pobre e sem recursos for o país mais difícil fica a
situação. Apesar de vários países liderados pela Índia estarem pressionando a
ONU e a Organização Mundial de Saúde pela quebra das patentes das vacinas em
virtude da situação de calamidade global, a resistência de governos,
laboratórios farmacêuticos e seus investidores tem se negado a negociar o
assunto.
Paradoxalmente essa posição na
defesa das patentes e propriedade intelectual é sustentada e fortemente
influenciada pelo maior doador de recursos para pesquisas e fornecimento de remédios
e vacinas para os países mais pobres – Bill Gates, o segundo homem mais rico do
planeta – que acredita fortemente na propriedade intelectual como geradora de
recursos para investimentos em pesquisas científicas e atividades filantrópicas
de ajuda a países sem recursos. A lógica é questionada por muitos críticos que
vêm a Fundação Gates - pesada investidora em vários projetos de vacinas, entre
eles o Gavi e o CEPI - como uma defensora dos direitos tradicionais de patentes
para as companhias farmacêuticas.
No obscuro universo da economia
globalizada dominada por investidores como o próprio Gates e outros bilionários
filantropos, o que se vê é um emaranhado de holdings, fundos de participação e
empresas de tecnologia que detêm grande parte dos capitais bilionários do
negócio global de medicamentos e pesquisa científica de novas drogas. E não se
pode esquecer que muito dinheiro público dos contribuintes que esperam esses
medicamentos e vacinas também está nebulosamente associado a esses investimentos
privados. E agora, além de terem financiado, como contribuintes, o investimento
em pesquisas, vêm seus governos tendo que gastar vultosas somas do orçamento público
para pagar por essas vacinas e remédios que, no final, mesmo sendo distribuídos
“gratuitamente” aos cidadãos, acabaram custando o suor do trabalhador para o
pagamento de impostos que compõem grande parte do orçamento público de seus
países.
Todos que conseguem receber sua
dose da vacina contra a Covid saem dos locais de vacinação aliviados e
agradecidos. Devemos agradecer muito aos profissionais de saúde que trabalham turnos
de até 12 horas em pé vacinando, muitas vezes setecentas pessoas por dia. Haja
punho. E a todos os médicos, enfermeiros e técnicos que tem trabalhado de forma
sobre-humana, com parcos recursos e correndo, eles mesmo, grande risco de vida.
Centenas de milhares deles já morreram no mundo todo. As pessoas que recebem a
vacina querem se certificar que todo o líquido salvador da seringa foi injetado
em seus braços. Com razão, já que aconteceram algumas fraudes. Mas deveriam
também pensar também nos lucros bilionários desse processo de vacinação. Apesar
de não pagarem nada pelas vacinas que recebem, deviam entender que já pagaram,
e bem caro por elas. E que seus governantes não lhes fazem favor algum. Que além da vacina, saem das pontas das
agulhas bilhões de dólares que serão injetados em poucas economias globais e no
bolso de um punhado de pessoas que controlam essas economias. Algumas centenas
de super-ricos que detêm mais recursos financeiros que a soma das posses de
todos os mais de sete bilhões de habitantes do planeta.
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