segunda-feira, 5 de abril de 2021

Tic-tac-tic-tac... ainda é possível desarmar essa bomba?


 
A pandemia de Covid não está só levando milhões de vidas e deixando tristeza e muitas famílias sofrendo perdas irreparáveis. A pandemia está derretendo não apenas economias fortes e estáveis, mas dizimando países que já vinham sofrendo décadas de desigualdades e miséria. Em comparação a 2019, o número de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza pode aumentar em 120 milhões de indivíduos. Esse número é baseado na premissa que a economia global comece a se recuperar em 2021. O que é pouco provável, se considerarmos que a pandemia não mostra sinais claros de arrefecimento, principalmente devido à escassez de vacinas e a dificuldade enfrentada por muitos países em controlar o aumento de casos e índices de transmissão.  Como é o caso do Brasil.

Nesse cenário, mais pessimista e realista, a perspectiva de longo prazo é que metade dessas pessoas, cerca de 60 milhões, pode permanecer permanentemente na situação de miséria extrema. Isso significa que o avanço, mesmo que pequeno, na diminuição da pobreza, conquistado desde 2018 seja perdido e que, em 2030 esse número seja ainda maior que os existentes em, antes da pandemia.  As previsões mostram ainda que as maiorias dessas pessoas estarão em países da África.

Quando se trata de recuperação econômica e proteção aos cidadãos, nas economias mais ricas, os gastos e investimentos, feitos por esses países com ajudas financeiras em prol da diminuição da pobreza para as nações mais pobres, em valores de 2018, representa cerca de 1% do total que será gasto pelos países ricos para conter os danos causados pela pandemia. Estima-se que cerca de U$ 13 trilhões de dólares serão investidos, contra pouco mais de U$ 130 bilhões que foram gastos com ajudas aos países mais pobres.

Porém mesmo nos países mais ricos e com maior qualidade de vida, a desigualdade social está presente e é responsável por um número expressivo de pessoas também vivendo na miséria ou em condições bem diferente dos cidadãos mais ricos. Se o montante gasto com o alívio dos danos causados pela pandemia é muito desproporcional nas ajudas oferecidas aos habitantes das áreas mais ricas e as mais pobres do planeta, assim são as vacinas e os recursos de assistência médica.

A imensa maioria das mortes causadas pela Covid 19, em todo o planeta, está entre as pessoas mais pobres e vulneráveis. Seja na Inglaterra, que possui um bom sistema de saúde pública (NHS) ou na África Subsahariana, onde estão os cinco países mais pobres do mundo (República Democrática do Congo, Moçambique, Uganda, Ruanda e Zimbábue). A pandemia do coronavírus escancarou as profundas desigualdades sociais no mundo inteiro. E elas são raciais, geográficas e políticas.

Em todos os países do globo pessoas são segregadas por sua nacionalidade ou etnia, pela cor da pele, pelo idioma, pelas crenças religiosas ou posições políticas. O são também por seu género e orientação sexual. Médicos e cientistas têm alertado e denunciado as diferenças nos padrões de contágio, severidade e morte de pacientes admitidos ou não em unidades hospitalares.  A severidade da doença e a taxa de letalidade é agravada por fatores como doenças preexistentes como diabetes, doenças cardiovasculares, doenças pulmonares, hipertensão e obesidade.

Essas pessoas, apesar de serem pacientes de alto risco, muitas vezes porque não receberam ao longo da vida e desde a infância assistência médica adequada. Muitas não receberam vacinas, mesmo as mais comuns e a maioria nunca teve acesso a alimentação adequada e mesmo em quantidade suficiente. Geralmente moram em unidades familiares superlotadas e em muitos locais sem as condições básicas de higiene, como água potável ou rede de esgotos. Vão crescendo, envelhecendo com patologias que poderiam ser evitadas ou curadas se tivessem tido acesso a tratamentos médicos e medicamentos adequados.

São também pessoas que vivem como emigrantes legais ou ilegais na periferia de centros urbanos. Ou em comunidades mais afastadas, porém carentes de recursos, como campos de refugiados e assentamentos de deslocados por guerras ou pela crise climática. Muitas dessas pessoas são as que, inclusive estão fora das estatísticas de infectados e mortos pela pandemia, pois adoecem, se curam ou acabam falecendo sem sequer chegar a um centro médico. Os números oficiais da pandemia em todo o planeta não são precisos e são apontados como subnotificados por muitos pesquisadores e entidades de saúde e ajuda humanitária.

Os que mais correm riscos adoecem e morrem são os trabalhadores em situação de subempregos, trabalho temporário, autônomos e os desempregados. A maioria não se qualifica para trabalhos remotos, para ajudas financeiras durante os confinamentos seja pelos empregadores ou pelos governos quando se encontram sem trabalho. Tem que fazer a escolha entre ficarem em casa e não terem o que comer ou como pagar suas contas ou se arriscarem em trabalhos sem nível de proteção adequado, viajando em transportes públicos superlotados. Em muitas situações as crianças não tem acesso a aulas remotas e se continuam frequentando as aulas podem adoecer e levar a doença para seus pais.

Nesses tempos de agravamento da pandemia ainda vejo muitas declarações de que pessoas e países, ricos ou pobres estão engajados em combatê-la porque ela afetaria ricos e pobres. Ao contrario de certas doenças endêmicas negligenciadas por falta de ajuda financeira e humanitária por não acometerem as economias mais ricas. Mas isso não é verdadeiro. Basta ver a distribuição desigual das doses de vacinas pelo mundo e a diminuição da ajuda humanitária, que vem ocorrendo no último ano de pandemia. Hoje temos uma guerra política e econômica em torno das vacinas. Países com vacinas sobrando e outros que nem iniciaram a vacinação.

Até mesmo os organismos criados para a distribuição de vacinas de forma mais igualitária e acessível, que deveria beneficiar as nações mais pobres, tem se visto envolvidas em polêmicas e dificuldades para fazer as doses chegarem aos braços dos mais necessitados. A aliança COVAX Facility, criada pela Organização Mundial de Saúde, e as parcerias público-privada GAVI (The Vacine Alliance) e CEPI (Coalizão para Inovações em Prevenção de Epidemias), tem sido acusadas de ceder a pressões políticas e financeiras. Por trás dessas três instituições estão as mãos de grandes entidades filantrópicas e doadores bilionários. A mais conhecida é a Fundação Bill e Melinga Gates, criada e administrada pelo casal dono da Microsoft. Bill gates é atualmente o segundo homem mais rico do planeta.  

Sem dúvida que é louvável o trabalho, o empenho e os bilhões de dólares doados por essas instituições e outros bilionários para ajudar no combate a pobreza e a doenças endêmicas na parcela mais pobre da população mundial. Mas o modelo econômico dessas instituições e os contratos de ajuda e financiamento em ações diretas e pesquisas cientificas ainda adota a velha e distorcida lógica do capitalismo. O exemplo mais recente é o caso da vacina desenvolvida por pesquisadores da Universidade de Oxford (Jenner Institute) com uma parte substancial das verbas garantidas pela fundação de Bill Gates.

A intenção inicial dos pesquisadores daquela universidade era doar os direitos da patente, de forma gratuita e pública, para governos e empresas que quisessem fabricar a vacina. Uma primeira parceria foi firmada com o Instituto Serum da Índia. Esse laboratório é o maior fabricante de vacinas do mundo. Cerca de um mês depois da assinatura do contrato, por orientação e influencia de Bill Gates e de sua fundação, a Universidade de Oxford deu um passo atrás e resolveu firmar um contrato de exclusividade de direitos com a multinacional britânica AstraZeneca, que assinou um novo contrato com a Serum. A partir daí as coisas tomaram um rumo não previsto e criaram um impasse na distribuição de vacinas.

Pelo novo contrato a Serum ficaria responsável por produzir para todos os países pobres elegíveis pelo consórcio GAVI (coordenado pela OMS). Esses 92 países escolhidos representam metade da população do planeta (cerca de 4 bilhões de pessoas). E somente a Índia, incluída entre esses, ficaria com cerca de 35% da produção (por conta do critério de número de habitantes). Mas uma cláusula não oficial permitiria que a Índia ficasse com 50% da produção para uso doméstico. Nesse contrato também há uma clausula que permite a AstraZeneca aprovar ou não a venda para outros países não listados no contrato, como a Inglaterra e o Canada. Não é justo que esses países, que já compraram de outros fabricantes doses mais que suficientes para imunizar todos os seus cidadãos, tirem a oportunidade dos países mais pobres de receberem suas doses. 

Mesmo porque a AstraZeneca, agora detentora exclusiva dos direitos da vacina de Oxford, possui outras fábricas fora da Índia onde também está produzindo essas imunizantes. Diversos países, entre as nações mais ricas também estão comprando praticamente toda essa produção. Não apenas desse laboratório, mas dos outros que estão fabricando vacinas. A Organização Mundial de Saúde está vendo seus esforços em criar a Aliança de Vacinas Covax patinar. E não tem tido sucesso na criação de um tratado, mesmo que temporário, para permitir a quebra de patentes das vacinas já descobertas e de outras em fase de pesquisa e testes. Entre os que se opõem a essa iniciativa estão países ricos, que já conseguiram comprar imunizantes suficientes para vacinar mais de uma vez todos os seus habitantes e, paradoxalmente, outros que não tem doses suficientes para uma vacinação rápida e efetiva, como o Brasil. Esse desequilíbrio, além de fazer aumentar o número de casos nas áreas mais pobres do planeta, vai também contribuir para aumentar as desigualdades econômicas e a pobreza.

Infelizmente as pressões políticas têm influenciado tanto quanto as questões econômicas, na distribuição dos imunizantes. Os atrasos para envio ao Brasil de vacinas prontas e ingredientes para produção (IFA) local do imunizante da AstraZeneca no Brasil são uma retaliação do governo indiano que pediu e não recebeu de nosso país o apoio na quebra das patentes.  É preciso entender que o planeta nunca esteve tão interconectado e dependente de equilíbrios frágeis, entre os diversos sistemas que o mantem. Sejam sistemas econômicos, políticos ou ambientais. Os modelos atuais apontam para um futuro sombrio. A ciência tem avisado. Resta saber quando as nações e seus cidadãos vão perceber e aceitar esses avisos. O relógio do fim do mundo continua seu tic-tac impassível. Mas talvez ainda haja tempo de desarmar essa bomba.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por sua participação. Seu comentário será respondido brevemente.