quinta-feira, 1 de abril de 2021

Teorias da conspiração... Covid fugido de laboratório? Acho que não!

 


Embora possa ser algo factível – um vírus fugir de um dos muitos laboratórios de pesquisa científica oficiais ou secretos – dificilmente seria o caso do SARSCoV2. Há muitos outros fatos, facilmente documentados, verificados e disponíveis abertamente para pesquisa, que permitem conclusões muito mais plausíveis e, inclusive, previstas há mais de uma década, sobre a hipótese de grandes pandemias causadas por patógenos conhecidos e outros ainda desconhecidos, por causas diversas. A maioria dos avisos foi dada por cientistas virologistas, ambientalistas, médicos e até economistas. Esses alertas contemplaram e ainda se referem aos danos ao meio ambiente causados pelo homem, como o desflorestamento, as experiências transgênicas, a poluição ambiental, o efeito estufa sobre o clima e as agora bastante visíveis mudanças climáticas resultantes dos fatores anteriores.

Para quem tem disposição de ler, fora do contexto das notícias rasas dos jornais e mídias sociais e das inevitáveis fakenews, na web se encontram em domínio público, milhares, senão milhões de artigos científicos e reportagens investigativas sérias sobre esses assuntos. Basta procurar do jeito certo e nas fontes fidedignas. Nesse artigo vou falar de coisas aparentemente sem nexo como hábitos de consumo, sustentabilidade, animais exóticos e outros nem tanto e a relação entre esses temas. Como uma sucessão de eventos levou aos caos mundial anunciado dessa atual pandemia. E como isso tudo ainda pode piorar.

Começo pelo ator principal dessa tragédia global: o SARSCoV2, que também é chamado, de forma equivocada,  de coronavírus, ou Covid (a doença que ele causa), pois o nome coronavírus se refere a família da qual ele faz parte. Conhecida como Coronaviridae, seus integrantes são compostos de uma cadeia de RNA, que pode ser traduzida imediatamente por uma célula hospedeira, em uma nova cópia desse mesmo vírus. Infecta anfíbios, pássaros, aves e mamíferos. Entre os tipos que podem infectar seres humanos são conhecidos sete deles. As epidemias mais conhecidas causadas por esses coronavírus foram a SARS (2002-2004 na China), a MERS (2012 no Oriente Médio) e a atual SARS-CoV2, que se iniciou na China em 2020 e está espalhada pelo mundo. Todos os três vírus são geneticamente bem parecidos entre si e a outros coronavírus que, por enquanto só infectam animais como os morcegos, seus principais hospedeiros e reservatórios atualmente conhecidos.

A pergunta de um bilhão de dólares é saber qual mamífero, fora os morcegos, ou talvez, até esses, passaram o SARSCov2 para os humanos. O SARSCoV2 já foi detectado em morcegos, pangolins, civetas, gatos, tartarugas, ferrets, macacos,  cachorros, hamsters, búfalos, vacas, ovelhas, porcos e em pombos. Ou seja, a lista é enorme. E as incertezas são muitas. Em um artigo recente, segundo Frutos et al. (2020)[1], os autores dizem que é preciso parar de culpar os pangolins ou outros animais silvestres pela transmissão do SARS-CoV2 aos humanos. Eles sustentam que muitos outros fatores decorrentes do comportamento humano, riscos ambientais e exploração não sustentável de recursos naturais propiciam um meio adequado para que zoonoses causadas por patógenos, antes restritas aos hospedeiros na vida selvagem, acabem passando para os humanos, através de adaptações e mutações, em anos ou mesmo décadas de contatos e contágios não detectados. Exatamente como vemos hoje, em um espaço de tempo relativamente curto, o surgimento das novas variantes do SARSCoV2.

Nesse caso uma das hipóteses sugeridas pelos autores, é que o contato próximo entre as espécies de coronavírus que infectam os diversos animais já citados, sem detrimento de outros ainda não detectados e humanos em diversos ecossistemas e locais do planeta, durante décadas levou ao surgimento de uma mutação em um deles que foi altamente favorável ao contágio extremamente elevado que vemos na pandemia atual. E isso pode ser apenas a ponta do iceberg. Segundo virologistas, diversos outros vírus e bactérias são potenciais candidatos a novas pandemias graves, nos anos vindouros, se a destruição dos habitats de certas espécies de animais continuarem no ritmo de degradação atual.

Chegamos então no ponto onde os hábitos de consumo da sociedade humana moderna, a transformação das florestas em terras agricultáveis ou pastagens, a pressão dos mercados internacionais de alimentos e bens de consumo, o poder de mobilidade geográfica das populações, o turismo não sustentado e a poluição do planeta, todos esses fatores causados pelas atividades humanas desreguladas e não a vida selvagem em si são os principais riscos que os humanos causam a si próprios.

Estudos científicos têm mostrado como os hábitos alimentares e de consumo de bens dos povos ocidentais têm impactado na derrubada de florestas. Um interessante estudo conduzido pelos pesquisadores Nguyen Tien Hoang e Keiichiro Kanemoto[2] , do Research Institute for Humanity and Nature (RIHN), em Kyoto no Japão, correlaciona a derrubada de árvores das florestas a diversos produtos consumidos pelos cidadãos com maior poder aquisitivo em países europeus e nos Estados Unidos. Eles estimam que cada consumidor ocidental em países com alto poder aquisitivo é responsável pela derrubada de quatro arvores a cada ano nas florestas de todo o planeta.

O estudo é o primeiro a fazer uma correspondência abrangente entre mapas de alta resolução do desflorestamento global a uma ampla gama de commodities importadas por cada país ao redor do mundo. Assim demonstram, por exemplo, que o chocolate tão apreciado por ingleses e alemães é um fator determinante para a destruição de florestas nativas na Costa do Marfim e em Gana. A carne bovina e a soja importada pelos Estados Unidos, União Europeia e pela China resultam na destruição das florestas no Brasil. Os apreciadores de café nos EUA, Alemanha e Itália são uma causa significante de desflorestamento na região central do Vietnã, enquanto a madeira bruta ou beneficiada demandada pela China, Coréia do Sul e Japão causa a perda de árvores no nordeste vietnamita.  A lista continua. Frutas e castanhas da Guatemala, borracha da Libéria, madeira do Camboja são largamente exportados para os Estados Unidos. Óleo de palma e produtos agropecuários importados pela China são responsáveis pela derrubada de árvores na Malásia.

Os danos irreparáveis nas florestas tropicais e outras zonas de mata ao redor do planeta, além de afetarem o clima, põem em risco não apenas as populações dessas áreas afetadas. Todo um ecossistema é destruído com reflexos que vão desde as mudanças climáticas, extinção de espécies e surgimento de novas epidemias e pandemias. Aumento da fome, desalojamento de populações nativas, guerras civis motivadas pela dominação de territórios lucrativos. Chegamos ao ponto de, com nossos hábitos de consumo não sustentáveis e exagerados a nos colocar também em risco. Somos, ao mesmo tempo, predadores e predados.

Ligando mais diretamente esse consumo humano não apropriado a algumas espécies de animais silvestres, notadamente os já citados no início desse artigo, temos o risco direto de produção de epidemias de difícil controle. Como já foi dito, a criação de camelos no norte da África, para produção de carne e exportação para países do Oriente Médio, aproximou o contato de mais humanos com esses animais, resultando na epidemia MERS-CoV (Síndrome Respiratória do Oriente médio) em 2012. O consumo de carne de pangolins (o mamífero mais traficado do mundo) e uso do animal para fins medicinais, já causou contaminação, mesmo em pequena escala, com os mesmos sintomas da Covid19 em habitantes de algumas cidades na China. A tal oportunidade que os coronavírus precisam para pularem para os humanos.

A criação em larga escala de civetas em cativeiro, na ilha de Sumatra (Indonésia), para produção do refinado café Kopi Luwak, que chega a custar U$ 3.000 o quilo, coloca os produtores do grão e demais habitantes do arquipélago em risco, pela proximidade com o animal originário das florestas e reservatório natural de um tipo de coronavírus. Morcegos são manipulados por coletores e produtores de guano (fezes do animal) – usado como fertilizante e para produção de medicamentos - havendo inclusive criações em cavernas artificiais na China e Vietnã. São apreciados também como alimento em algumas regiões. E os morcegos são hospedeiros e reservatórios de vários coronavírus e outros patógenos. Além disso, podem viajar longas distâncias, são encontrados em quase todo o planeta e facilmente adaptáveis nos ambientes urbanos. Gatos selvagens e domésticos caçam morcegos. E coronavírus já foram isolados do sangue dos bichanos, inclusive há casos reportados de gatos domésticos que foram infectados pelos seus donos com o novo coronavírus.

Outros animais de estimação como gatos, cachorros, tartarugas, ferrets, e hamsters e macacos também são hospedeiros de coronavírus. Vamos incluir na lista porcos, búfalos, bois e vacas e ovelhas criados extensivamente em áreas previamente ocupadas por florestas ou matas nativas e temos uma tempestade perfeita: milhões ou mesmo bilhões de interações entre humanos e animais selvagens ou domésticos que são, ou podem se tornar, reservatórios de uma quantidade ainda incerta de coronavírus e suas várias cepas querendo apenas uma única oportunidade de se tornarem viáveis na transmissão entre humanos. Depois, é só uma questão de tempo, desconhecimento ou descaso para se disseminarem de maneira descontrolada como estamos vendo agora.

Como sugere o título desse artigo, é muito mais fácil acreditar na ciência e entender que nosso modo de conviver com o planeta nos coloca em risco como espécie, além de todo o ecossistema. Acreditar que um vírus escapou de um laboratório ou foi produzido como arma biológica é mais confortável e nos faz sentir menos culpados por tanta devastação e sofrimento.  Mas a ameaça real, o pior vírus é mesmo o comportamento humano ganancioso e irresponsável. E tudo o que queremos agora é voltar ao tal normal. Sair de nossas tocas, onde fomos acuados pela nossa própria irresponsabilidade com o planeta, para fazer tudo igual. Mas esse normal nunca foi natural. O novo normal, de que alguns falam, nunca realmente será. Pois certamente o queremos como uma espécie de adaptação confortável do normal antigo. Uma parte muito menor da humanidade tem esse sonho insano de ser como um Rei Midas antes da desilusão, transformando tudo que tocamos em ouro para ver que, no fim morreremos de inanição. Ou como no romance de Ghoete, doutores Fausto sonhando com a obtenção de gozos impossíveis para depois suplicar a absolvição e entrada no Paraíso. Termino esse artigo citando uma das falas do Dr. Fausto na cena I do quadro V:

“FAUSTO

Entendamo-nos bem. Não ponho eu mira

na posse do que o mundo alcunha gozos.

O que preciso e quero, é atordoar-me.

Quero a embriaguez de incomportáveis dores,

a volúpia do ódio, o arroubamento

das sumas aflições. Estou curado

das sedes do saber; de ora em diante

às dores todas escancaro est’alma.

As sensações da espécie humana em peso,

quero-as eu dentro em mim; seus bens, seus males

mais atrozes, mais íntimos, se entranhem

aqui onde à vontade a mente minha

os abrace, os tacteie; assim me torno

eu próprio a humanidade; e se ela ao cabo

perdida for, me perderei com ela.”



[1] FRUTOS, Roger et al. COVID-19: Time to exonerate the pangolin from the transmission of SARS-CoV-2 to humans. Estados Unidos: NCBI, 2020. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7405773/ . Acesso em: 31 mar. 2021.

[2] HOANG, Nguyen Tien, e KANEMOTO, Keiichiro. Mapping the deforestation footprint of nations reveals growing threat to tropical forests. Kyoto: RIHN, 2021. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41559-021-01417-z . Acesso em: 31 mar. 2021.

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