Embora possa ser algo factível –
um vírus fugir de um dos muitos laboratórios de pesquisa científica oficiais ou
secretos – dificilmente seria o caso do SARSCoV2. Há muitos outros fatos,
facilmente documentados, verificados e disponíveis abertamente para pesquisa,
que permitem conclusões muito mais plausíveis e, inclusive, previstas há mais
de uma década, sobre a hipótese de grandes pandemias causadas por patógenos conhecidos
e outros ainda desconhecidos, por causas diversas. A maioria dos avisos foi
dada por cientistas virologistas, ambientalistas, médicos e até economistas. Esses
alertas contemplaram e ainda se referem aos danos ao meio ambiente causados
pelo homem, como o desflorestamento, as experiências transgênicas, a poluição ambiental,
o efeito estufa sobre o clima e as agora bastante visíveis mudanças climáticas resultantes
dos fatores anteriores.
Para quem tem disposição de ler, fora do contexto das notícias rasas dos jornais e mídias sociais e das inevitáveis fakenews, na web se encontram em domínio público, milhares, senão milhões de artigos científicos e reportagens investigativas sérias sobre esses assuntos. Basta procurar do jeito certo e nas fontes fidedignas. Nesse artigo vou falar de coisas aparentemente sem nexo como hábitos de consumo, sustentabilidade, animais exóticos e outros nem tanto e a relação entre esses temas. Como uma sucessão de eventos levou aos caos mundial anunciado dessa atual pandemia. E como isso tudo ainda pode piorar.
Começo pelo ator principal dessa
tragédia global: o SARSCoV2, que também é chamado, de forma equivocada, de coronavírus, ou Covid (a doença que ele
causa), pois o nome coronavírus se refere a família da qual ele faz parte. Conhecida
como Coronaviridae, seus integrantes são
compostos de uma cadeia de RNA, que pode ser traduzida imediatamente por uma
célula hospedeira, em uma nova cópia desse mesmo vírus. Infecta anfíbios,
pássaros, aves e mamíferos. Entre os tipos que podem infectar seres humanos são
conhecidos sete deles. As epidemias mais conhecidas causadas por esses
coronavírus foram a SARS (2002-2004 na China), a MERS (2012 no Oriente Médio) e
a atual SARS-CoV2, que se iniciou na China em 2020 e está espalhada pelo mundo.
Todos os três vírus são geneticamente bem parecidos entre si e a outros
coronavírus que, por enquanto só infectam animais como os morcegos, seus
principais hospedeiros e reservatórios atualmente conhecidos.
A pergunta de um bilhão de
dólares é saber qual mamífero, fora os morcegos, ou talvez, até esses, passaram
o SARSCov2 para os humanos. O SARSCoV2 já foi detectado em morcegos, pangolins,
civetas, gatos, tartarugas, ferrets, macacos,
cachorros, hamsters, búfalos, vacas, ovelhas, porcos e em pombos. Ou
seja, a lista é enorme. E as incertezas são muitas. Em um artigo recente,
segundo Frutos et al. (2020)[1],
os autores dizem que é preciso parar de culpar os pangolins ou outros animais
silvestres pela transmissão do SARS-CoV2 aos humanos. Eles sustentam que muitos
outros fatores decorrentes do comportamento humano, riscos ambientais e
exploração não sustentável de recursos naturais propiciam um meio adequado para
que zoonoses causadas por patógenos, antes restritas aos hospedeiros na vida
selvagem, acabem passando para os humanos, através de adaptações e mutações, em
anos ou mesmo décadas de contatos e contágios não detectados. Exatamente como
vemos hoje, em um espaço de tempo relativamente curto, o surgimento das novas
variantes do SARSCoV2.
Nesse caso uma das hipóteses
sugeridas pelos autores, é que o contato próximo entre as espécies de
coronavírus que infectam os diversos animais já citados, sem detrimento de outros
ainda não detectados e humanos em diversos ecossistemas e locais do planeta, durante
décadas levou ao surgimento de uma mutação em um deles que foi altamente
favorável ao contágio extremamente elevado que vemos na pandemia atual. E isso pode
ser apenas a ponta do iceberg. Segundo virologistas, diversos outros vírus e
bactérias são potenciais candidatos a novas pandemias graves, nos anos
vindouros, se a destruição dos habitats de certas espécies de animais continuarem
no ritmo de degradação atual.
Chegamos então no ponto onde os
hábitos de consumo da sociedade humana moderna, a transformação das florestas
em terras agricultáveis ou pastagens, a pressão dos mercados internacionais de
alimentos e bens de consumo, o poder de mobilidade geográfica das populações, o
turismo não sustentado e a poluição do planeta, todos esses fatores causados
pelas atividades humanas desreguladas e não a vida selvagem em si são os principais
riscos que os humanos causam a si próprios.
Estudos científicos têm mostrado
como os hábitos alimentares e de consumo de bens dos povos ocidentais têm
impactado na derrubada de florestas. Um interessante estudo conduzido pelos pesquisadores
Nguyen Tien Hoang e Keiichiro Kanemoto[2]
, do Research Institute for Humanity and Nature (RIHN), em Kyoto no Japão,
correlaciona a derrubada de árvores das florestas a diversos produtos consumidos
pelos cidadãos com maior poder aquisitivo em países europeus e nos Estados
Unidos. Eles estimam que cada consumidor ocidental em países com alto poder
aquisitivo é responsável pela derrubada de quatro arvores a cada ano nas
florestas de todo o planeta.
O estudo é o primeiro a fazer uma
correspondência abrangente entre mapas de alta resolução do desflorestamento
global a uma ampla gama de commodities importadas por cada país ao redor do
mundo. Assim demonstram, por exemplo, que o chocolate tão apreciado por ingleses
e alemães é um fator determinante para a destruição de florestas nativas na
Costa do Marfim e em Gana. A carne bovina e a soja importada pelos Estados
Unidos, União Europeia e pela China resultam na destruição das florestas no
Brasil. Os apreciadores de café nos EUA, Alemanha e Itália são uma causa
significante de desflorestamento na região central do Vietnã, enquanto a
madeira bruta ou beneficiada demandada pela China, Coréia do Sul e Japão causa
a perda de árvores no nordeste vietnamita. A lista continua. Frutas e castanhas da Guatemala,
borracha da Libéria, madeira do Camboja são largamente exportados para os
Estados Unidos. Óleo de palma e produtos agropecuários importados pela China
são responsáveis pela derrubada de árvores na Malásia.
Os danos irreparáveis nas
florestas tropicais e outras zonas de mata ao redor do planeta, além de
afetarem o clima, põem em risco não apenas as populações dessas áreas afetadas.
Todo um ecossistema é destruído com reflexos que vão desde as mudanças
climáticas, extinção de espécies e surgimento de novas epidemias e pandemias.
Aumento da fome, desalojamento de populações nativas, guerras civis motivadas
pela dominação de territórios lucrativos. Chegamos ao ponto de, com nossos hábitos
de consumo não sustentáveis e exagerados a nos colocar também em risco. Somos,
ao mesmo tempo, predadores e predados.
Ligando mais diretamente esse
consumo humano não apropriado a algumas espécies de animais silvestres,
notadamente os já citados no início desse artigo, temos o risco direto de
produção de epidemias de difícil controle. Como já foi dito, a criação de
camelos no norte da África, para produção de carne e exportação para países do Oriente
Médio, aproximou o contato de mais humanos com esses animais, resultando na
epidemia MERS-CoV (Síndrome Respiratória do Oriente médio) em 2012. O consumo
de carne de pangolins (o mamífero mais traficado do mundo) e uso do animal para
fins medicinais, já causou contaminação, mesmo em pequena escala, com os mesmos
sintomas da Covid19 em habitantes de algumas cidades na China. A tal
oportunidade que os coronavírus precisam para pularem para os humanos.
A criação em larga escala de
civetas em cativeiro, na ilha de Sumatra (Indonésia), para produção do refinado
café Kopi Luwak, que chega a custar U$ 3.000 o quilo, coloca os produtores do
grão e demais habitantes do arquipélago em risco, pela proximidade com o animal
originário das florestas e reservatório natural de um tipo de coronavírus.
Morcegos são manipulados por coletores e produtores de guano (fezes do animal) –
usado como fertilizante e para produção de medicamentos - havendo inclusive
criações em cavernas artificiais na China e Vietnã. São apreciados também como
alimento em algumas regiões. E os morcegos são hospedeiros e reservatórios de
vários coronavírus e outros patógenos. Além disso, podem viajar longas
distâncias, são encontrados em quase todo o planeta e facilmente adaptáveis nos
ambientes urbanos. Gatos selvagens e domésticos caçam morcegos. E coronavírus já
foram isolados do sangue dos bichanos, inclusive há casos reportados de gatos
domésticos que foram infectados pelos seus donos com o novo coronavírus.
Outros animais de estimação como gatos,
cachorros, tartarugas, ferrets, e hamsters e macacos também são hospedeiros de
coronavírus. Vamos incluir na lista porcos, búfalos, bois e vacas e ovelhas criados
extensivamente em áreas previamente ocupadas por florestas ou matas nativas e
temos uma tempestade perfeita: milhões ou mesmo bilhões de interações entre
humanos e animais selvagens ou domésticos que são, ou podem se tornar,
reservatórios de uma quantidade ainda incerta de coronavírus e suas várias
cepas querendo apenas uma única oportunidade de se tornarem viáveis na transmissão
entre humanos. Depois, é só uma questão de tempo, desconhecimento ou descaso
para se disseminarem de maneira descontrolada como estamos vendo agora.
Como sugere o título desse
artigo, é muito mais fácil acreditar na ciência e entender que nosso modo de
conviver com o planeta nos coloca em risco como espécie, além de todo o ecossistema.
Acreditar que um vírus escapou de um laboratório ou foi produzido como arma
biológica é mais confortável e nos faz sentir menos culpados por tanta
devastação e sofrimento. Mas a ameaça
real, o pior vírus é mesmo o comportamento humano ganancioso e irresponsável. E
tudo o que queremos agora é voltar ao tal normal. Sair de nossas tocas, onde
fomos acuados pela nossa própria irresponsabilidade com o planeta, para fazer tudo
igual. Mas esse normal nunca foi natural. O novo normal, de que alguns falam,
nunca realmente será. Pois certamente o queremos como uma espécie de adaptação
confortável do normal antigo. Uma parte muito menor da humanidade tem esse
sonho insano de ser como um Rei Midas antes da desilusão, transformando tudo
que tocamos em ouro para ver que, no fim morreremos de inanição. Ou como no
romance de Ghoete, doutores Fausto sonhando com a obtenção de gozos impossíveis
para depois suplicar a absolvição e entrada no Paraíso. Termino esse artigo
citando uma das falas do Dr. Fausto na cena I do quadro V:
“FAUSTO
Entendamo-nos bem. Não ponho eu
mira
na posse do que o mundo alcunha
gozos.
O que preciso e quero, é
atordoar-me.
Quero a embriaguez de
incomportáveis dores,
a volúpia do ódio, o arroubamento
das sumas aflições. Estou curado
das sedes do saber; de ora em
diante
às dores todas escancaro
est’alma.
As sensações da espécie humana em
peso,
quero-as eu dentro em mim; seus
bens, seus males
mais atrozes, mais íntimos, se
entranhem
aqui onde à vontade a mente minha
os abrace, os tacteie; assim me
torno
eu próprio a humanidade; e se ela
ao cabo
perdida for, me perderei com ela.”
[1] FRUTOS,
Roger et al. COVID-19: Time to
exonerate the pangolin from the transmission of SARS-CoV-2 to humans. Estados
Unidos: NCBI, 2020. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7405773/
. Acesso em: 31 mar. 2021.
[2] HOANG, Nguyen Tien, e KANEMOTO,
Keiichiro. Mapping the deforestation footprint of nations reveals growing
threat to tropical forests. Kyoto: RIHN, 2021. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41559-021-01417-z
. Acesso em: 31 mar. 2021.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por sua participação. Seu comentário será respondido brevemente.