Durante séculos, senão em toda a história da humanidade, os gastos de recursos com a autodefesa, frente a qualquer ameaça a sobrevivência de nossa espécie, levaram a escolhas de como gerir os meios de subsistência, de forma a equilibrar esses recursos sempre limitados, na balança de sucesso ou fracasso na manutenção da vida. Numa comparação simplória, para os primeiros humanos, gastar materiais combustíveis para preparar alimentos ou iluminar a entrada do abrigo para afastar as feras, usar a madeira para fazer o fogo ou esculpir lanças, alimentar melhor os guerreiros e caçadores do que os mais velhos ou as crianças para garantir indivíduos mais fortes para a caça ou para a defesa do grupo deviam ser questões muito discutidas dentro das comunidades.
Essa equação permanece a mesma,
milhares de anos depois. Não importando que hoje os recursos e conhecimentos de
que o homem dispõe tenham se aperfeiçoado e multiplicado em uma escala quase inconcebível.
Da fogueira a lança esculpida com pedras afiadas aos sistemas de vigilância por
satélites ou mísseis balísticos intercontinentais, apesar do imenso
conhecimento acumulado necessário para se conceber e construir esses sistemas e
artefatos, a balança que deve regular os gastos entre defesa - em tempos de
guerra ou paz - e o orçamento para manter a sobrevivência e a qualidade de vida
de nossa espécie continua pendendo para um ou outro lado.
Diversos países ao longo da
história chegaram a gastar tanto com armas e guerras que acabaram por sucumbir
à miséria e fome de seu povo. Muitos outros apostaram no aperfeiçoamento das
relações diplomáticas e doutrinas não beligerantes como forma de defesa. Com isso
puderam investir os recursos que amealhavam no desenvolvimento da saúde, alimentação
e educação de seu povo. Essa relação danosa ou positiva aparece em diversos
graus em países com diversos níveis de riqueza. Temos países com elevado PIB e
renda per capta com cidadão vivendo quase na miséria. Assim como o contrário. Mas
esse medo atávico do desconhecido, do inimigo declarado ou oculto, assim como a
inclinação a obtenção de mais poder e riquezas à custa de guerras, invasões e
dominação de outros povos ainda subsistem na mente humana. Hoje em dia não
apenas pela guerra real, mas, sobretudo pelas guerras comerciais. Dentro da essência
do capitalismo, que regula a movimentação das riquezas, está implícita a
necessidade da existência do combate, do orgulho de ser vencedor e da
humilhação do derrotado.
Mas em 2020, no meio de discussões
e insatisfações de muitas nações, organismos multilaterais e pensadores da
cultura sobre as mudanças profundas nas relações entre nações, capital e
desenvolvimento sustentável, como forma de evitar uma catástrofe futura,
causada principalmente pelo desequilíbrio dos ecossistemas e as consequências climáticas,
um inimigo desconhecido e inesperado nos levou a um estado de guerra mundial. A
extensão e gravidade desse novo conflito mundial tem tal magnitude, envolvendo
todas as nações do planeta, que seria equivocado a denominarmos de uma Terceira
Guerra Mundial. Pois se trata de uma guerra onde o inimigo comum não é nem
humano e não há uma nação hostil a querer dominar outros países. Para a
denominarmos assim teríamos de numera-la como talvez a Quinta Guerra, sendo a
primeira a Peste Negra do século XIV, a segunda a que a história conhece como a
Primeira entre 1914 e 1918, a Terceira sendo a epidemia da Gripe Espanhola em
1918 a quarta de 1939 a 1945 (Segunda guerra Mundial) e a quinta atual pandemia
de Covid19.
Mas tal classificação é inoportuna
e desproporcional. Se olhássemos pelo número de mortos, a pandemia da Peste Negra
foi a mais letal, seguida da Gripe Espanhola, da Primeira Grande Guerra, da
Segunda e finalmente da epidemia atual. Quanto à destruição física de países
inteiros e cidades, a Segunda Guerra foi a mais devastadora. Quanto ao critério
do colapso econômico, talvez a Primeira Guerra tenha sido a mais danosa.
Porque, inclusive, a miséria e a ruptura dos tímidos serviços de amparo social
que estavam se estabelecendo ao final do século XIX, foram responsáveis pela
disseminação rápida e descontrolada da gripe espanhola e as cicatrizes
políticas e econômicas e o sentimento de vingança e reparação acabariam por
fomentar, duas décadas depois, a Segunda Grande Guerra.
A epidemia de Covid19 não deixa,
portanto de ser uma guerra. Mas trata-se de um conflito com características intrínsecas
e, ao mesmo tempo, diversas, mesmo quando comparada às outras duas grandes
pandemias. Penso que se trata de um resultado cumulativo de fatos e condições
que remetem ao prato desiquilibrado da balança que apresentei no início desse
artigo. Se fosse resumir de maneira simplista, diria que ela é o resultado do
medo do inimigo desconhecido que morava nas trevas das noites dos homens das
cavernas. A extrapolação de uma necessidade necessária e razoável de proteção
da própria existência, levada a extremos pelos subterfúgios da mente sempre
fantasiosa, por vezes irracional do ser humano. Sinto-me tentado a simplificar novamente
meu pensamento falando de números. Os números das guerras. As reais e o
confronto que o mundo trava contra um vírus novo e cheio de artimanhas.
Paradoxalmente o mundo entrou em
uma corrida armamentista sem escalas após a Segunda Guerra Mundial. Fatias cada
vez maiores do orçamento de muitos países eram solicitadas por presidentes e
assessores militares para supostamente se prepararem para um possível terceiro
conflito mundial ou simplesmente como forma de, mostrando poderio militar
superior, dissuadir os inimigos a um ataque. Foi a época da guerra fria, que
embora fosse liderada pelos estados Unidos e pela extinta união soviética,
influenciou a política de defesa e compra armamentos de em diversos países. As
tecnologias desenvolvidas durante a Segunda Guerra e posteriormente, elevaram o
nível de sofisticação e letalidade das armas e sistemas de defesa. O custo
desses equipamentos, devido à alta tecnologia envolvida cresceu consideravelmente.
Os EUA até os dias de hoje foi o país que mais gastou e gasta seu orçamento
interno com uma parcela significante de investimento em defesa e armamentos.
Despende o triplo dos gastos feitos pela China, que ocupa o segundo lugar na
economia global. Segundo levantamento de 2019 foram mais de 730 bilhões de
dólares, cerca de 4% do PIB. A China vem em segundo lugar com 261 bilhões que
representam cerca de 2,5% do seu PIB. O Brasil, apesar de aparecer sempre nos
últimos lugares, em indicadores de desenvolvimento econômico e sociais mais
importantes, e tendo caído do 6º para o 12º lugar no ranking dos maiores PIBs
mundiais, aparece em 11º entre as nações que gastam mais com defesa e
armamentos, superando países como Israel, Itália e Canadá. Em 2019 o total
global estimado com gastos em defesa e armamentos chegou a quase 2 trilhões de
dólares. Para comparação esse valor é maior que o PIB brasileiro. Se
dividíssemos o valor total gasto no mundo com armamento e defesa pelo numero de
habitantes do planeta, isso significaria cerca de U$ 250/ano por pessoa ou U$
0,68 por dia. Atualmente, no mundo, cerca de 2,6 bilhões de pessoas vivem com
menos de U$1,00 por dia.
O mundo vem falhando sistematicamente há
séculos em combater as desigualdades. Se antes do surgimento do pensamento
humanista, que ensaia os primeiros passos no final do século XVIII, com as
revoluções que interromperam os ciclos de privilégios dos feudalismos e dos regimes
monárquicos, os séculos XX e XXI viram esses movimentos se tornarem mais ativos
e terem mais voz. Mesmo com a facilidade de propagações de ideias e movimentos propiciados
pela melhoria e agilidade dos meios de comunicação e o surgimento da internet,
a desigualdade ainda está longe de ser resolvida. Os desmatamentos para
atividades de mineração, agropecuária e exploração de recursos das florestas,
visando suprir uma parte privilegiada da humanidade, fez o homem entrar em
contato com doenças e patógenos que viveram milênios contidos nos reservatórios
naturais dentro de áreas antes inabitadas.
A pandemia do Coronavírus é um
desdobramento desse desequilíbrio. Há uma relação indireta entre as epidemias
causadas por vírus de diferentes linhagens, como os causadores das gripes
aviárias e suínas. Alguns pesquisadores teorizam que o abate em massa de aves e
porcos para evitar a propagação entre as criações em diversos países levaram a
redução da oferta de produtos in natura e industrializados provenientes desses
animais. Na China se cogita que o consumo de animais silvestres aumentou
durante e depois da gripe suína, levando os mercados, principalmente nas
cidades do interior a ofertarem carnes de animais silvestres como o pangolim,
do qual se suspeita terem vindo os primeiros casos de contaminação do coronavírus.
O manuseio e consumo dessas espécies facilitou a passagem do vírus dessas
espécies para humanos. A redução das florestas no sudeste asiático fez com que
várias espécies de morcegos, hospedeiros primários de alguns dois oito tipos de
coronavírus conhecidos, passassem a habitar as matas e casas das cidades
próximas a essas áreas desmatadas.
No caso da síndrome Respiratória
Aguda do Oriente Médio (Mers-Cov) o contato do homem com o camelo deu origem às
primeiras infecções passadas de animais para humanos. As primeiras infecções
surgiram na Arábia Saudita, país com longa tradição na criação de camelos. Mas já foram detectados surtos no Quênia,
país que atualmente tem a maior população de camelos do mundo. Mais uma vez o
que levou pastores e agricultores daquele pais a intensificaram a criação
desses animais foi o desequilíbrio do clima e a pobreza. As secas constantes
naquele país africano dificultaram a criação de bovinos. Os camelos, pela
resistência maior a viverem em ambientes sem oferta regular de água e sua
longevidade, levaram a um maior investimento em sua criação. E em testagens
realizadas nesses animais mostrou que, não apenas eles, mas seus criadores, já possuíam
no sangue anticorpos para o Mers-Cov. O risco desse vírus causar uma pandemia preocupa
cientistas que monitoram a doença. Camelos e morcegos são os hospedeiros
conhecidos, mas pode haver outras espécies. A transmissão entre humanos já
acontece. E a letalidade e taxa de transmissão é ainda mais alta que a do
Covid19.
Com a pandemia atual de Covid, a
ponta desse iceberg foi revelada. Existem muitos inimigos ocultos na natureza
em desequilíbrio constante e progressivo que podem causar mais estragos do que
o Covid19. E os gastos para combater esses inimigos e tentar ganhar essa guerra
são desproporcionalmente altos. Segundo os dados ainda sendo compilados a
maioria dos países, que tradicionalmente gastam as maiores somas em sistemas de
defesa e armas, já gastaram ou vão gastar de 3 a 4 vezes mais recursos de seu
PIB no combate direto a doença e em planos de recuperação econômica. O déficit
nos EUA pode chegar a U$ 5,7 trilhões de dólares até 2030. A Inglaterra gastará
só em 2021 mais de U$455 bilhões de dólares coma pandemia. No Brasil esse custo
deverá ser de U$ 100 bilhões. Ou seja, o custo para combater um inimigo em uma
guerra impensável há um ano, em todos esses países citados e, de modo geral,
nas demais maiores economias do mundo, será cerca de 4 a 7 vezes maior que o
custo em armas e defesa.
Nessa Guerra Mundial atual nenhum
canhão será disparado. Nenhum míssil nuclear lançado, nenhum soldado dará um
tiro. É uma guerra silenciosa, mas não menos mortal que as outras. Os danos a
economia e programas de assistência social e financeira aos cidadãos, empresas
e ao próprio sistema financeiro serão sentidos por décadas. A recuperação será
lenta, pois os estragos atingiram todos os países do mundo. E não podemos
esquecer que todas elas ainda estavam se recuperando ou permaneciam
deterioradas pelos reflexos da crise global de 2008. O desafio é maior ainda
quando se coloca na balança que os estragos causados ao meio ambiente e ao
clima já faziam pressão em quase todas as economias do mundo para diminuírem ou
alterarem os meios de produção e atividades econômicas mais poluentes para
tentarmos salvar o planeta de uma catástrofe cada vez mais visível e eminente –
a permanente alteração climática – que, segundo os mais pessimistas pode, muito
mais que o Coronavírus ameaçar a existência da vida humana em nosso planeta.
Penso que mesmo essa pandemia não
vai alterar a forma de pensar e agir dos seres humanos e seus governos. O que
mais se fala hoje é num retorno a um normal que nunca existiu e nunca poderá
ser como era. Vejo com pessimismo a criação de uma consciência global de ajuda
mútua que mude radicalmente a maneira como temos vivido. Um pacto para
reconstrução do meio ambiente degradado, a erradicação da fome e da miséria, a
diminuição da desigualdade entre os povos. Pensando em uma nova era de paz
permanente entre os povos, mesmo o desvio total dos investimentos em defesa,
armamentos e guerras não seria suficiente para resolver esses problemas. Mas já
seria um caminho a seguir. Uma demonstração de boa vontade entre as nações em
prol da segurança da nossa espécie.
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