Sapateiro ensinando o ofício a um aprendiz. Foto: Autor ignorado. |
Conversava com uma amiga, durante um agradável café, sobre
hábitos de consumo e preço das coisas. Particularmente itens que tem preços
mais altos em virtude de marca ou fama. Ela me mostrou um belo par de
sandálias, em estilo retrô azul marinho,
que estava usando. Foram feitos sob medida e por encomenda. Me dizia que foram
caros. Perguntei a ela se teriam sido mais caros que um modelo caro de uma
dessas marcas famosas de sapatos femininos. Me respondeu que seriam o dobro do
preço.
Vivemos hoje tempos de mudança. Pessoas em todo mundo estão
revendo seus hábitos de consumo. Qualquer estudo sobre sustentabilidade e
distribuição de riquezas vai sempre esbarrar na questão da imposição de padrões
de consumo desenfreados como um dos grandes vilões da degradação do planeta e
do aumento da desigualdade entre pobres e ricos. Sem dúvida. Não precisamos
consumir tanto. Mas há muitos milênios abandonamos o hábito de produzir tudo
que necessitamos. O capitalismo é filho pródigo dessa mudança. E não é razoável
supor que poderíamos voltar, pelo menos com a quantidade de habitantes
desigualmente distribuídos nas diversas regiões do planeta, a viver em um
estilo de vida como de nossos ancestrais.
O que faltaria seria essencialmente o tempo e o acesso a
todas as matérias primas que necessitaríamos para produzir todos os objetos,
comida e demais itens necessários à nossa sobrevivência. Chegamos em uma
situação onde devemos trocar trabalho, nosso tempo, por produtos que
necessitamos. Tempo do fabricante. O grande problema é que essa relação de
troca, cada dia se torna menos justa. As relações de consumo, embora sejam
reguladas pelo dinheiro, são basicamente relações de troca de tempo. Tempo é
dinheiro. Processos industriais reduziram o tempo de produção das coisas. Mas
seu custo, apesar da suposta economia de escala, não foi reduzido. Entra aí a
tão falada relação de mais valia e a ganância dos que detém o capital/tempo em
querer lucros acima do que seria justo socialmente.
Quando falamos em consumo sustentável, devemos pensar mais
na relação de tempo. Geralmente há um pensamento que o mais caro é supérfluo e
gerador de desigualdade. Essa noção vem da distorção visível de que somente
poucas pessoas tem acesso ao produtos diferenciados ou mais caros. Mas não
necessariamente o mais caro é mais danoso ao meio ambiente ou a igualdade da
economia entre as classes. O consumo em larga escala, baseado em padrões
incutidos em nós pela publicidade, que nos leva a desejar consumir mais e mais
está na raiz desse desequilíbrio.
Voltando ao exemplo das sandálias de minha amiga, o que é
mais favorável ao meio ambiente e a economia da igualdade? Comprar vinte pares
de sapatos mais baratos ou caros, porém descartáveis por conta da qualidade ou
das mudanças impostas pelo modismo, ou comprar três pares mais caros, mas que
durarão mais tempo e, mesmo apesar do preço mais elevado, contribuirão para a
melhor distribuição da riqueza gerada por sua fabricação e contribuirão para
degradar menos o meio ambiente.
Senão vejamos: até uns cinquenta anos atrás era comum as
pessoas encomendarem sapatos sob medida ao sapateiro do bairro. Não que fosse
mais baratos. Mas menos os menos favorecidos podiam ter ao menos um par. Os muito pobres, como ainda hoje, não tinham
condições de comprar nem um par, e se valiam de doações de sapatos velhos. Mas
ainda podiam mandar colocar uma meia sola ou um salto barato que permitiria uma
sobrevida ao calçado velho.
O sapateiro do bairro tinha uma vida estável. Muito
provavelmente não ficaria rico fabricando ou reformando sapatos, mas conseguia
manter sua família, gerar um ou dois empregos, geralmente a aprendizes
moradores do mesmo bairro e ainda comprava a matéria prima principal, o couro,
no curtume da própria cidade. As relações de troca de tempo/dinheiro eram mais
diretas e justas. A esperteza do capitalismo, aliada a uma publicidade
massificada, nos convenceu que era melhor que comprássemos sapatos
industrializados, feitos em quantidade e com um preço menor. Que na verdade, a
longo prazo, iria custar muito mais caro à economia da igualdade e ao meio
ambiente.
Fábrica de sapatos em Manfields, Inglaterra, c1900. Fonte da imagem: Northampton Museum and Art Gallery |
O sapateiro acabaria por fechar as portas de seu pequeno
comércio. Deixaria de gerar empregos. Ele e seus ajudantes acabariam
trabalhando para uma grande indústria de calçados. O curtume sem as encomendas locais acabaria
desaparecendo, dando lugar a grandes grupos concentradores e produtores de
couro natural ou sintético. A mecanização que tornaria viável todo esse
processo, levaria também à extinção de diversos postos de trabalho na cadeia
local de empregos. No fim, todos acabariam ganhando menos. E o sapato pronto da
vitrine, apregoado como mais barato e acessível se tornaria caro também.
Hoje há um grande movimento de volta ao consumo e produção
sustentáveis. Ao fortalecimento das relações de consumo mais próximas e
diretas. Não sem ceticismo. Em uma economia globalizada, como a maioria das
pessoas dependendo de bens produzidos em regiões cada vez mais distantes e a
concentração de pessoas vivendo em aglomerados urbanos densamente povoados, há
espaço para essas relações mais diretas?
Não existe ainda uma resposta segura. Mas algumas
experiências que vem dando certo em diversas comunidades ao redor do planeta. O
que precisamos fazer é tentar. E para isso precisamos estar atentos e focar no
ponto central da questão do consumo: o valor da troca do nosso tempo como o
tempo de quem produz o que precisamos. E mais ainda: a ética dessa troca. Se
vamos gastar nosso tempo/dinheiro em uma troca com o outro, devemos antes nos
perguntar se ela será justa para os dois lados. Precisamos averiguar se, quem
nos fornecerá o que precisamos, vai distribuir o lucro gerado na transação de
forma mais igualitária.
Quando prestamos atenção a esses detalhes estamos fazendo
uma pequena parte no caminho inverso de uma industrialização que vem se
provando inadequada ao meio ambiente e a distribuição justa do lucro. Se
podemos escolher entre comprar a sandália de marca famosa de um grande grupo de
moda ou encomendar a um artesão, devemos pensar antes para onde vai e como será
distribuído o nosso investimento.
A força do consumidor está alavancada exatamente na mesma
rede de informações disponível para disseminar o consumo. E as empresas, mesmo
que timidamente, em locais e áreas isoladas já se preocupam com a repercussão
de sua imagem, quanto à responsabilidade social e ambiental. Na época que
escrevo esse artigo está em tela, na mídia nacional, a repercussão das mudanças
na legislação que regulamenta, define e pune o trabalho escravo. Como sempre,
vemos as pessoas se engajarem de forma supérflua na discussão, geralmente
compartilhando notícias, muitas vezes equivocadas nas redes sociais. Mas ficam
por aí.
Um olhar mais atento à nossos hábitos de consumo, uma
investigação mesmo que mais superficial das redes de fornecedores onde gastamos
nosso tempo/ trabalho pode sim levar,
talvez até com mais eficiência que uma lei, a redução do trabalho mal
remunerado. Comprar das pessoas certas, embora seja um trabalho de formiguinha,
pode levar ao desenvolvimento de novas formas de gerar trabalho, renda e
emprego mais dignos. Certamente o aumento na procura de bens manufaturados e
produzidos localmente vai fortalecer o surgimento de novos negócios,
cooperativas, associações e mecanismos de comércio mais éticos e sustentáveis.
Resumindo, se minha amiga pagou mais caro para um pequeno
negócio produzir suas sandálias, talvez seu tempo/ dinheiro investido tenha
sido melhor distribuídos entre os trabalhadores que participaram da cadeia
produtiva. O sapato de marca provavelmente só remuneraria bem o dono da
fábrica, enquanto todo o restante da cadeia de valor gerada com a venda, tenha
tido que sobreviver com margens de lucro apertadas que levariam a remunerações
injustas dos envolvidos. Pensemos nisso.
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