sábado, 15 de julho de 2017

As múmias contemporâneas da solidão.

Na montagem a fachada do prédio onde morava Maria del Rosário, seu carro na garagem e a caixa de correio abarrotada de correspondências. Fotogramas extraídos de vídeo disponível no site do jornal Voz da Galícia em http://www.lavozdegalicia.es/noticia/galicia/2017/07/04/vecinos-sospecharon-muerte-mujer-dejo-pagar-alquiler/0003_201707G4P4994.htm, 

A matéria original é do diário El País (Espanha). O caso despertou atenção, dos noticiários e das autoridades daquele, país pelo grande número de pessoas encontradas mortas na mesma situação que Maria del Rosário. A Espanha, assim como Portugal e principalmente o Japão  sofrem o problema, que tende a se agravar nas próximas décadas. Sobre o Japão, clique aqui para ler o post.

A solidão, como problema de saúde pública, tem fatores que transcendem a abordagem tradicional do problema. Na maioria das vezes, pelo conveniente descaso dos sistemas de bem estar social e saúde, é atribuída ao próprio indivíduo e seu comportamento psicossocial. Quando muito, se referem
a causas externas, como abandono dos parentes próximos. Na verdade, o declínio nas taxas de fertilidade, as famílias se resumindo a basicamente pai, mãe e um filho, o aumento da expectativa de vida e a migração forçada pelas crises financeiras tem e vão contribuir cada vez mais para que vejamos esse tipo de caso: as múmias contemporâneas. A Espanha está alarmada com a grande quantidade de casos que vem acontecendo em suas províncias e o governo estima que 4,63 milhões de espanhóis viva nessa situação. Isso representa cerca de 10% da população atual. Metade tem ais de 65 anos e e cerca de 70% são mulheres. (dados do Instituto Nacional de Estatística). Entre essas mulheres, cerca de 500 mil tem mais de 85 anos.

E isso aponta também para a perversidade do machismo dominante e da desigualdade de gêneros. O homem, mesmo mais velho, principalmente se tiver boa renda, não fica tanto na solidão, pois acaba sempre, por comodidade ou medo de ficar só, arrumando outra companheira. Pior que isso, são os que abandonam a mulher, porque está ficou velha para eles. O sonho infantil da busca da juventude os levam a procurar uma substituta bem mais nova. E no egoísmo próprio desse tipo de machista mau caráter, tende a subtrair da antiga companheira direitos, bens e pensões. Seja por artifícios ilegais ou legais (porém pouco éticos). Ou simplesmente sumindo sem deixar paradeiro e vendendo ou passando os bens que possui para terceiros. Geralmente a amante ou nova mulher.

Enfim, é o retrato de uma sociedade global doente, que se encontra hiperconectada, mas carente de afeto direto. Aquele olho-no-olho que jamais vai substituir um "like". Uma sociedade de discrepâncias, onde os 1% mais ricos detém 90% da riqueza gerada. Onde os 10% com melhor qualidade de vida, tem altas taxas de suicídio, por solidão e outros fatores. Que já investe pesado em andróides de companhia por estarem envelhecendo rápido e sem reposição dos que morrem. E, perversamente, é uma sociedade global onde os outros 90% restantes vivem com sérias restrições financeiras, doentes pelo excesso de trabalho e contribuindo, pelo modo de vida, para a destruição total de nosso ecossistema.

E o mais perverso de tudo: entre os 90% dos não ricos, uma parcela de cerca de 20% vive nos padrões descritos acima. São o que as estatísticas chamam de pessoas morando em países com boa qualidade de vida. Isso significa que 0s 70% restantes da população global, são isso mesmo: restos. Vivem em extrema pobreza, em ambientes poluídos ou degradados, em zonas de guerra, como escravos ou pior: como indigentes totais. Sobre os quais não desperta nem o interesse dos mais ricos em torná-los escravos. E o mais nefasto: essa é a parcela da população mundial com as mais altas taxas de natalidade e número de filhos por mulher/família. E cuja expectativa de vida vem aumentando, apesar de tudo. De certa forma, um paradoxo perverso. Pois a expectativa de vida aumentou nos últimos cinquenta anos graças a campanhas de vacinação e prevenção de doenças endêmicas patrocinadas pela ONU e financiadas pelos 1% mais ricos.

Resta-nos perguntar com qual interesse. Qual o sentido (para além do humanitário) em diminuir as mortes prematuras de bebês e crianças e aumentar a expectativa de vida dos mais velhos com vacinas, se ao mesmo tempo não são criadas condições que melhorem também a qualidade de vida, o acesso a parte da riqueza global e condições para que mantenham por si mesmos uma economia sustentável? A retórica de alguns economistas e cientistas sociais, no passado, dizia que essa população sustentava o consumo e a produção de riquezas para os 1% mais ricos. Mas a realidade contemporânea nos mostra que grande parte dos mais pobres não é mais necessária para gerar ou consumir essa riqueza.

O emprego em larga escala da tecnologia robótica cada vez mais equipada com Inteligência Artificial Autônoma, tornou o uso da mão-de-obra humana, mesmo a escrava, onde não há gastos com salários ou proteção social anti-econômico e contra-producente. E a alegação que os mais ricos precisam dos mais pobres, é uma falácia. Essa parcela de indigentes não consome a maior parte dos produtos gerados. Portanto não interessam na cadeia de consumo. Vemos portanto, que a solidão da senhora Rosário - a múmia de La Coruña - é também parte de uma solidão global, de descaso e abandono do ser humano.

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