Morreu hoje, neste Rio de Janeiro, sitiado por uma guerra
civil nunca declarada, o menino Arthur. Foi o primeiro, não foi e nem será o
último. Um dia depois, em outro bairro, morreria outro Arthur também dentro do
ventre de sua mãe. Parece uma
inacreditável e macabra coincidência. Mas não é. Nessa cidade, dominada por um terrorismo mais
cruel que o existente em diversas partes do mundo, mata-se e morre sem
explicação cabível. Não que deva haver explicação que justifique uma guerra.
Qualquer guerra.
Mas pelo menos em outras guerras civis, reconhecidas como
tal pelos governos dos países em conflito e pelas Nações Unidas, grupos de
mediação, observadores isentos, forças de ocupação de paz, tentam entender o
que acontece para sessar o conflito.
Os civis envolvidos recebem, no mínimo,
status de pessoas em risco. Recebem
asilo em outras nações com status de refugiados reconhecido por leis
internacionais. Se não conseguem fugir, ou serem retirados das zonas de guerra,
pelo menos recebem ajuda humanitária ou são resguardados, da melhor maneira
possível, pelas próprias forças
militares em conflito ou entidades civis como a Cruz Vermelha e Médicos Sem
Fronteira.
Mesmo os exércitos oponentes, de alguma maneira e em alguns
casos, procuram não atingir populações civis e seguem algumas leis
internacionais sobre o estado de guerra. Temem, no mínimo, um julgamento
posterior por um tribunal internacional, por crimes de guerra e genocídio. Além
disso, cessada agressão, mediadores iniciam um processo de reparo de danos aos
civis, ajudam a reconstruir as áreas devastadas e a economia. Uma ou ambas as
partes envolvidas podem ser condenadas a ressarcir perdas à população afetada,
as empresas privadas e, acima de tudo, nações antes em conflito, voltam a viver
em paz, buscando recuperar suas economias.
Na guerra civil não declarada no Brasil, que beira o
genocídio, dada a crueldade, seletividade e quantidade do número de mortos e
desaparecidos, duas mães perderam seus filhos ainda na barriga. Claudinéia, mãe
do Arthur alvejado por uma bala de fuzil (arma de guerra) dentro de seu ventre.
Flávia, mãe do outro Arthur, que morreu em virtude do atropelamento cruel de
sua mãe pelos assaltantes. Dois meninos, o mesmo nome, a mesma idade
gestacional. Aos dois, faltavam poucas semanas para virem ao mundo. Esse mundo
em guerra sem guerra chamado Brasil. Não tiveram sequer a chance de nascerem e
virarem, ao menos refugiados ou fugitivos. E provavelmente se estivessem no
meio de uma batalha declarada em um país africano ou no Oriente Médio, teriam
mais chances de sobreviver.
E os danos permanentes à essas duas mães? E a seus esposos e
suas famílias? Para essas pessoas, o terror de uma guerra que ninguém quer
reconhecer, não sessará nunca. Não haverá recomeço em local seguro em sua
pátria. Porque não há final declarado desse conflito. Não haverá mediadores e
nem reconstrução ou reparação. Nem sequer poderão continuar suas vidas em país
estrangeiro, acolhidos como refugiados. E nem verão os culpados punidos e
condenados. Quem pagará por isso? Haverá um senhor da guerra, um governante
facínora ou soldado, ou guerrilheiro punidos?
Não. Porque aqui a guerra não acabou ainda. Muitas crianças,
dentro e fora do útero de suas mães, esperam para morrer. Muitos jovens,
adultos ou idosos, ainda estão disponíveis, como animais em confinamento,
esperando o dia do abate. Há ainda muita carne fresca a ser consumida. E um
mercado ávido e ganancioso por consumir esse produto. Sim, viramos produto. Nas
mãos de políticos corruptos, empresários inescrupulosos (tal como os
políticos), nas mãos da mídia que lucra de diversas formas com esse abate. Na
falta de consciência cívica, moral e intelectual de um povo inerte, inepto.
Impassível.
Soluções? Todos sabem ou acham que sabem. E se apressam em
apontar. Políticas públicas e leis ineficientes e beneficentes estão aí para os
resguardarem. Protegem a quem? A quais interesses? A qual senhor? Soluções
mirabolantes são engendradas. Sempre à custa de dinheiro prévio, para implantar
soluções que não serão testadas, discutidas ou aprovadas pelos verdadeiros
interessados. Tudo aqui se faz em nome do povo, pelo povo, mas não para o povo.
Quero finalizar esse texto da forma mais contundente
possível. Pois só uma leitura contundente acorda mentes contundidas com o horror de certos fatos. Começo apresentado um livro escrito no século dezoito e termino com um fato histórico trágico e polêmico. Alertas e exemplos são vividos, são estudados, mas acabam esquecidos. Ou se não esquecidos, tornados banais para preservar privilégios e esconder a inconveniente verdade para gerações futuras. Dessa forma meu leitor entenderá melhor a provocação do título que escolhi para esse artigo.
“Uma Modesta Proposta” é o título principal de um livro
escrito em 1729 pelo escritor e romancista Jonathan Swift (Irlanda, 1667-1745). Ele é mais conhecido do público por
outro romance famoso: “As viagens de
Gulliver”, que toda criança leu ou deveria ler, em tempos de uma escola
mais plural. O livro, é na verdade, folhetim com trinta páginas. Inicialmente foi
publicado anonimamente pelo próprio autor. A primeira edição assinada, data de
1790. A capa está reproduzida na montagem fotográfica no início desse artigo.
Nele, o autor fazia
uma sátira eloquente e mórbida da desigualdade social, da pobreza e da fome
extrema vivida por seus compatriotas na Irlanda. Na época, ainda era parte da comunidade
britânica. Sua independência efetiva se deu somente em 1937. A Inglaterra e
seus lordes eram donos das terras e da
produção de bens e alimentos. Dotada de poucos recursos dados pela monarquia
inglesa, e com produção insuficiente de alimentos, devido ao clima e as
características do solo, aliadas à falta de estradas para coletar e distribuir
a produção, seus habitantes viviam em estado de pobreza ou miserabilidade. E os
que podiam migravam para Dublin, a maior cidade e também a capital da colônia.
La se tornavam pedintes que nas palavras do autor, aborreciam, os governantes e
senhores das terras (landlords)
pedindo esmolas e comida.
Como forma de
denunciar de maneira chocante e grotesca a situação, ele propôs no livro Uma
Modesta proposta para prevenir que as crianças filhas de pessoas pobres na
Irlanda se tornassem um fardo para seus pais ou o país e ao mesmo tempo para
fazer delas algo benéfico para a sociedade”. Esse é o título completo do
folhetim. Mas depois ficou conhecido, no meio acadêmico e literário, pelo
título abreviado “Uma Modesta Proposta”.
No trecho mais contundente e conhecido ele escreve:
”I have been assured by a very knowing
American of my acquaintance in London, that a young healthy child well nursed
is, at a year old, a most delicious, nourishing, and wholesome food, whether
stewed, roasted, baked, or boiled ...”
Resumidamente ele
afirma que “foi lhe assegurado por um importante cidadão americano, de sua
inteira confiança, que uma criança jovem e saudável, bem cuidada e nutrida com
o leite materno será, ao final do primeiro ano de vida, a mais deliciosa,
nutritiva e maravilhosa iguaria, seja ela assada, gratinada, frita ou cozida”.
Embora essa seja a tradução integral do trecho citado, a referi como resumida
porquê para se ter o entendimento completo da sátira, teríamos que entender
todo o contexto histórico, inclusive o trecho onde ele cita o “notável cidadão
americano.
E ele continua
desafiando o leitor em outro parte do folheto afirmando que um conhecido
político “lhe disse que muitos cavalheiros, tendo já destruído o estoque de
cervos em seu país, lhe convencia que a procura por vitelos bem poderia ser
suprida pelos corpos de meninos e meninas que não tivessem excedido os quatorze
anos de idade:
“He said that many gentlemen of this kingdom, having of late destroyed
their deer, he conceived that the want of venison might be well supplied by the
bodies of young lads and maidens, not exceeding fourteen years of age...”
Vai
mais longe ainda e relata ao leitor que ele “acredita que nenhum cavalheiro
iria se queixar por pagar dez shillings
– quantia suficiente na época para comprar quatorze ovelhas – por uma carcaça
(pesando 12 quilos) de uma suculenta criança gordinha, com a qual, lhe foi dito, se poderia preparar quatro
pratos excelentes e nutritivos de carne:
”and I believe no gentleman would repine to give ten
shillings for the carcass of a good fat child, which, as I have said, will make
four dishes of excellent nutritive meat...”
Ler esse texto de J. Swift e outros autores como Honoré de
Balzac, que foram críticos e mordazes em usar a prosa e o conto para
denunciarem as desigualdades de sua época, geralmente com histórias fantásticas
e engraçadas, já percebemos o a longevidade de uma igualdade “desigual”, nas
sociedades tidas como desenvolvidas e democráticas após as convulsões sociais
que puseram fim ao sistemas de governo, vigentes durante toda a Idade Média.
Pode o meu leitor vislumbrar - embora o desenvolvimento desse
tema deixarei para o futuro - de onde vem certas lendas e contos, mesmo os
infantis, das bruxas ou velhinhas que comiam criancinhas, de gigantes malvados
que também as queriam como petisco, da história do surgimento do amor materno
como fenômeno social recente, e tantas outras referencias escondidas em nosso
cotidiano. Até mesmo serve para curiosamente explicar porque o termo petit lardon era muito usado como
palavra carinhosa (ou mal intencionada?) para designar os bebês rechonchudos e
rosados. E que há relatos bem verossímeis, para além dos conhecidos e
praticados em rituais e costumes de certos grupos sociais, da prática do
comércio de bebês e crianças para servirem de alimento, durante grandes crises
de fome na Europa Medieval.
Sobretudo um outro livro, escrito por um padre católico,
mais à frente na mesma Irlanda retratada por Swift, durante o período conhecido
como “A Fome da Batata na Irlanda”. E é
exatamente com esse outro fato histórico que desejo concluir esse texto,
revelando o fio da meada que utilizei, em seu título, para comparar o estado de
violência e a morte dos dois bebês Arthur com a fome e a utopia das ideias
fáceis e por isso mesmo, capazes de convencer um grupo social inteiro.
Entre 1780 e 1845 a população da Irlanda dobrou. Passando de
4 para 8 milhões de habitantes. Por volta de 1840, cerca de um terço da
população da Irlanda dependia quase que exclusivamente da batata como fonte de
alimento. Se você meu leitor, chegou até aqui, vai me questionar por quê, cerca
de um século antes, nosso escritor e caricata irlandês escreveu um texto
denunciando de maneira macabra e sádica, os problemas da pobreza e da fome em
sua terra? Como - se em 1729, ele sugeria comerem criancinhas, para eliminar
parte da população pobre – essa mesma população avançou, nas décadas seguintes,
até duplicar seu número na primeira metade do século XIX?
A resposta é: ganancia, políticas utópicas e desigualdade de
distribuição de renda e riqueza. Voltemos lá ao ano de 1729, quando Swift
publicou anonimamente sua “Modesta Proposta”. O povo irlandês estava bastante
descontente com as políticas e leis impostas pela Inglaterra. Durante séculos a
população da ilha, devido ao isolamento do continente europeu, as sucessivas
invasões, até a dominação definitiva pelo império britânico, todos esses
fatores associados a um clima pouco propício a diversos tipos de culturas de
grãos e vegetais, e a falta de estradas ligando os condados mais isolados de
Dublin, o centro administrativo e
financeiro, produziram uma acentuada desigualdade social.
Os Landlords (ou
donos das terras) estavam preocupados com a baixa produtividade delas, mesmo
explorando os locatários que as
ocupavam. Não era a pobreza ou a fome de seus colonos que os incomodava e sim o
pouco lucro. Pois os nobres tinham que importar da Inglaterra boa parte das comidas,
iguarias, tecidos e outros bens de consumo. E haviam altas taxas cobradas pela
coroa britânica. Para pagar esses luxos eles precisavam exportar também. E a
pouca produção de bens e commodities era agravada pela fome e miséria dos
trabalhadores e agricultores.
Então alguém teve a brilhante ideia, por volta de 1700, de
introduzir a batata inglesa ( não nativa da Irlanda) na agricultura. Esse
cultivo se deu tão bem com o clima e o solo, que a produtividade, em termos de
volume por área de plantio, se tornou altamente rentável. Cada dono de extensão
de terra, as foi dividindo em propriedades menores, para acomodar a população
que crescia rapidamente – mesmo que pela nutrição quase que exclusiva da
abundante batata - de tal forma que
quase todos os campos cultiváveis se tornaram monocultura do tubérculo. Era
tanta a produção, que os senhores das terras ( os nobres) começaram a ganhar
mais exportando o produto para a Inglaterra e outros países. Tudo parecia ir
bem, na política dominada pelo pensamento católico romano. Pobres felizes de
barriga cheia de batata mais crianças nascendo e aumentando a mão-de-obra, e os
ricos ficando mais ricos. Lembrando que a Igreja nunca condenou a riqueza,
preferindo mais enaltecer as virtudes da pobreza como forma de servir a Deus.
O que ninguém previa – e até hoje é motivo de controvérsia
entre historiadores divididos na tese do genocídio do povo irlandês na Fome da
Batata – é que um fungo (Phytophthora
infestans) que causa a doença conhecida como a requeima da batata, invadiu
as plantações, trazidos nos navios de carga que chegavam com mercadorias de
origem vegetal aos portos irlandeses. Isso se deu no ano de 1845 e cerca de 80%
das plantações de batata foram dizimadas.
Os pequenos agricultores foram os primeiros a sofrerem os
efeitos da má nutrição (levaram décadas comendo somente batatas) e da fome
subsequente. Doenças como o tifo, a disenteria e a cólera dizimaram a população
de uma forma tal, que por volta de 1848, quando o fungo se auto delimitou e
desapareceu, entre 500 mil a 1,5 milhões de pessoas haviam morrido. E outro
milhão havia deixado o país rumo ao continente e aos Estados Unidos. Como
resultado, em 1911 a população havia diminuído para o mesmo número de
habitantes que havia em 1780, ou cerca de 4 milhões de pessoas.
Aqui encerro esse artigo, voltando ao ponto inicial. O
estado de coisas que vivemos no Brasil atual, com a violência chegando a tal
ponto hediondo e disseminado, onde a vida, especialmente de crianças, grupos em
situação de segregação ou abandono, idosos sem condições de manterem uma vida
digna, cada vez mais são abandonados à própria sorte, por famílias igualmente
pobres, lotando as ruas com cacos humanos, nos leva à reflexão, como no livro
de Swift, se atualmente o valor à vida - principalmente para crianças, que
deveriam ser cuidadas para nosso futuro – seja o mesmo descrito no conto.
Suficiente para servir quatro porções de carne macia e suculenta a cavalheiros
e damas de fino trato, ou serem trocadas pelos seus pais por uma dúzia de
cabras, de forma a garantir o sustento dos demais membros da família por mais
alguns meses.
Mais ainda, um alerta e uma indagação: será que não
acreditamos em batatas como solução conveniente para povo e poder? Pois me
parece que o milagre esperado pelas promessas utópicas e ao mesmo tempo
simplistas, que nos foram vendidas não aconteceu. O Phytophthora
infestans representado por falácias, pensamentos oníricos e manias de
grandeza parece ter feito seu estrago e está destruindo em pouco tempo toda a
monocultura de ideias e dogmas plantados em poucas décadas como forma de
acomodação de teorias úteis de solução de conflitos de interesses de unspoucos
e de esperanças e anseios de muitos. E quem há de pagar por esses
prejuízos? Pois certamente os Landlords exigirão a recuperação de seus
capitais perdidos e os servos com sempre hão de pagar essa conta. Talvez o lado
positivo que sobre é que esses meeiros, não se conformem mais em dar suas crias
de graça para encher barrigas opulentas. O perigo é que comessem eles também a
acreditar que a solução modesta de Jonathan
Swift possa lhes trazer também algum lucro. Assim como diria o Quincas Borba de Machado de Assis, só
nos restaria dizer: “Ao vencedor as batatas!”.
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