segunda-feira, 31 de julho de 2017

Uma Proposta Modesta. Ou, que vai pagar o prejuízo.

#pracegover Composição contendo três retângulos simulando as cores da bandeira francesa.No retângulo azul está a imagem da radiografia do menino Arthur baleado na barriga da mãe com a pergunta: a liberdade é azul? No retângulo branco ao centro a imagem da capa original do livro Uma Proposta Modesta com a pergunta: a igualdade é branca? No retângulo vermelho a imagem da mãe de Arthur fazendo uma selfie da barriga de gestante e a pergunta: a fraternidade é vermelha? Crédito da montagem: Marcelo Ruiz  com imagens disponíveis na web.

Morreu hoje, neste Rio de Janeiro, sitiado por uma guerra civil nunca declarada, o menino Arthur. Foi o primeiro, não foi e nem será o último. Um dia depois, em outro bairro, morreria outro Arthur também dentro do ventre de sua mãe.  Parece uma inacreditável e macabra coincidência. Mas não é.  Nessa cidade, dominada por um terrorismo mais cruel que o existente em diversas partes do mundo, mata-se e morre sem explicação cabível. Não que deva haver explicação que justifique uma guerra. Qualquer guerra.

Mas pelo menos em outras guerras civis, reconhecidas como tal pelos governos dos países em conflito e pelas Nações Unidas, grupos de mediação, observadores isentos, forças de ocupação de paz, tentam entender o que acontece para sessar o conflito.
Os civis envolvidos recebem, no mínimo, status de  pessoas em risco. Recebem asilo em outras nações com status de refugiados reconhecido por leis internacionais. Se não conseguem fugir, ou serem retirados das zonas de guerra, pelo menos recebem ajuda humanitária ou são resguardados, da melhor maneira possível,  pelas próprias forças militares em conflito ou entidades civis como a Cruz Vermelha e Médicos Sem Fronteira.

Mesmo os exércitos oponentes, de alguma maneira e em alguns casos, procuram não atingir populações civis e seguem algumas leis internacionais sobre o estado de guerra. Temem, no mínimo, um julgamento posterior por um tribunal internacional, por crimes de guerra e genocídio. Além disso, cessada agressão, mediadores iniciam um processo de reparo de danos aos civis, ajudam a reconstruir as áreas devastadas e a economia. Uma ou ambas as partes envolvidas podem ser condenadas a ressarcir perdas à população afetada, as empresas privadas e, acima de tudo, nações antes em conflito, voltam a viver em paz, buscando recuperar suas economias.

Na guerra civil não declarada no Brasil, que beira o genocídio, dada a crueldade, seletividade e quantidade do número de mortos e desaparecidos, duas mães perderam seus filhos ainda na barriga. Claudinéia, mãe do Arthur alvejado por uma bala de fuzil (arma de guerra) dentro de seu ventre. Flávia, mãe do outro Arthur, que morreu em virtude do atropelamento cruel de sua mãe pelos assaltantes. Dois meninos, o mesmo nome, a mesma idade gestacional. Aos dois, faltavam poucas semanas para virem ao mundo. Esse mundo em guerra sem guerra chamado Brasil. Não tiveram sequer a chance de nascerem e virarem, ao menos refugiados ou fugitivos. E provavelmente se estivessem no meio de uma batalha declarada em um país africano ou no Oriente Médio, teriam mais chances de sobreviver.

E os danos permanentes à essas duas mães? E a seus esposos e suas famílias? Para essas pessoas, o terror de uma guerra que ninguém quer reconhecer, não sessará nunca. Não haverá recomeço em local seguro em sua pátria. Porque não há final declarado desse conflito. Não haverá mediadores e nem reconstrução ou reparação. Nem sequer poderão continuar suas vidas em país estrangeiro, acolhidos como refugiados. E nem verão os culpados punidos e condenados. Quem pagará por isso? Haverá um senhor da guerra, um governante facínora ou soldado, ou guerrilheiro punidos?

Não. Porque aqui a guerra não acabou ainda. Muitas crianças, dentro e fora do útero de suas mães, esperam para morrer. Muitos jovens, adultos ou idosos, ainda estão disponíveis, como animais em confinamento, esperando o dia do abate. Há ainda muita carne fresca a ser consumida. E um mercado ávido e ganancioso por consumir esse produto. Sim, viramos produto. Nas mãos de políticos corruptos, empresários inescrupulosos (tal como os políticos), nas mãos da mídia que lucra de diversas formas com esse abate. Na falta de consciência cívica, moral e intelectual de um povo inerte, inepto. Impassível.

Soluções? Todos sabem ou acham que sabem. E se apressam em apontar. Políticas públicas e leis ineficientes e beneficentes estão aí para os resguardarem. Protegem a quem? A quais interesses? A qual senhor? Soluções mirabolantes são engendradas. Sempre à custa de dinheiro prévio, para implantar soluções que não serão testadas, discutidas ou aprovadas pelos verdadeiros interessados. Tudo aqui se faz em nome do povo, pelo povo, mas não para o povo.

Quero finalizar esse texto da forma mais contundente possível. Pois só uma leitura contundente acorda mentes contundidas com o horror de certos fatos.  Começo apresentado um livro escrito no século dezoito e termino com um fato histórico trágico e polêmico. Alertas e exemplos são vividos, são estudados, mas acabam esquecidos. Ou se não esquecidos, tornados banais para preservar privilégios e esconder  a inconveniente verdade para gerações futuras. Dessa forma meu leitor entenderá melhor a provocação do título que escolhi para esse artigo.

“Uma Modesta Proposta” é o título principal de um livro escrito em 1729 pelo escritor e romancista Jonathan Swift (Irlanda, 1667-1745). Ele é mais conhecido do público por outro romance famoso: “As viagens de Gulliver”, que toda criança leu ou deveria ler, em tempos de uma escola mais plural. O livro, é na verdade, folhetim com trinta páginas. Inicialmente foi publicado anonimamente pelo próprio autor. A primeira edição assinada, data de 1790. A capa está reproduzida na montagem fotográfica no início desse artigo.

Nele, o autor fazia uma sátira eloquente e mórbida da desigualdade social, da pobreza e da fome extrema vivida por seus compatriotas na Irlanda. Na época, ainda era parte da comunidade britânica. Sua independência efetiva se deu somente em 1937. A Inglaterra e seus lordes  eram donos das terras e da produção de bens e alimentos. Dotada de poucos recursos dados pela monarquia inglesa, e com produção insuficiente de alimentos, devido ao clima e as características do solo, aliadas à falta de estradas para coletar e distribuir a produção, seus habitantes viviam em estado de pobreza ou miserabilidade. E os que podiam migravam para Dublin, a maior cidade e também a capital da colônia. La se tornavam pedintes que nas palavras do autor, aborreciam, os governantes e senhores das terras (landlords) pedindo esmolas e comida.

Como forma de denunciar de maneira chocante e grotesca a situação, ele propôs no livro Uma Modesta proposta para prevenir que as crianças filhas de pessoas pobres na Irlanda se tornassem um fardo para seus pais ou o país e ao mesmo tempo para fazer delas algo benéfico para a sociedade”. Esse é o título completo do folhetim. Mas depois ficou conhecido, no meio acadêmico e literário, pelo título abreviado  “Uma Modesta Proposta”. No trecho mais contundente e conhecido ele escreve:

”I have been assured by a very knowing American of my acquaintance in London, that a young healthy child well nursed is, at a year old, a most delicious, nourishing, and wholesome food, whether stewed, roasted, baked, or boiled ...”

Resumidamente ele afirma que “foi lhe assegurado por um importante cidadão americano, de sua inteira confiança, que uma criança jovem e saudável, bem cuidada e nutrida com o leite materno será, ao final do primeiro ano de vida, a mais deliciosa, nutritiva e maravilhosa iguaria, seja ela assada, gratinada, frita ou cozida”. Embora essa seja a tradução integral do trecho citado, a referi como resumida porquê para se ter o entendimento completo da sátira, teríamos que entender todo o contexto histórico, inclusive o trecho onde ele cita o “notável cidadão americano.

E ele continua desafiando o leitor em outro parte do folheto afirmando que um conhecido político “lhe disse que muitos cavalheiros, tendo já destruído o estoque de cervos em seu país, lhe convencia que a procura por vitelos bem poderia ser suprida pelos corpos de meninos e meninas que não tivessem excedido os quatorze anos de idade:

“He said that many gentlemen of this kingdom, having of late destroyed their deer, he conceived that the want of venison might be well supplied by the bodies of young lads and maidens, not exceeding fourteen years of age...”

Vai mais longe ainda e relata ao leitor que ele “acredita que nenhum cavalheiro iria se queixar por pagar dez shillings – quantia suficiente na época para comprar quatorze ovelhas – por uma carcaça (pesando 12 quilos) de uma suculenta criança gordinha, com a  qual, lhe foi dito, se poderia preparar quatro pratos excelentes e nutritivos de carne: 

”and I believe no gentleman would repine to give ten shillings for the carcass of a good fat child, which, as I have said, will make four dishes of excellent nutritive meat...”

Ler esse texto de J. Swift e outros autores como Honoré de Balzac, que foram críticos e mordazes em usar a prosa e o conto para denunciarem as desigualdades de sua época, geralmente com histórias fantásticas e engraçadas, já percebemos o a longevidade de uma igualdade “desigual”, nas sociedades tidas como desenvolvidas e democráticas após as convulsões sociais que puseram fim ao sistemas de governo, vigentes durante toda a Idade Média.

Pode o meu leitor vislumbrar - embora o desenvolvimento desse tema deixarei para o futuro - de onde vem certas lendas e contos, mesmo os infantis, das bruxas ou velhinhas que comiam criancinhas, de gigantes malvados que também as queriam como petisco, da história do surgimento do amor materno como fenômeno social recente, e tantas outras referencias escondidas em nosso cotidiano. Até mesmo serve para curiosamente explicar porque o termo petit lardon era muito usado como palavra carinhosa (ou mal intencionada?) para designar os bebês rechonchudos e rosados. E que há relatos bem verossímeis, para além dos conhecidos e praticados em rituais e costumes de certos grupos sociais, da prática do comércio de bebês e crianças para servirem de alimento, durante grandes crises de fome na Europa Medieval.  

Sobretudo um outro livro, escrito por um padre católico, mais à frente na mesma Irlanda retratada por Swift, durante o período conhecido como “A Fome da Batata na Irlanda”.  E é exatamente com esse outro fato histórico que desejo concluir esse texto, revelando o fio da meada que utilizei, em seu título, para comparar o estado de violência e a morte dos dois bebês Arthur com a fome e a utopia das ideias fáceis e por isso mesmo, capazes de convencer um grupo social inteiro.

Entre 1780 e 1845 a população da Irlanda dobrou. Passando de 4 para 8 milhões de habitantes. Por volta de 1840, cerca de um terço da população da Irlanda dependia quase que exclusivamente da batata como fonte de alimento. Se você meu leitor, chegou até aqui, vai me questionar por quê, cerca de um século antes, nosso escritor e caricata irlandês escreveu um texto denunciando de maneira macabra e sádica, os problemas da pobreza e da fome em sua terra? Como - se em 1729, ele sugeria comerem criancinhas, para eliminar parte da população pobre – essa mesma população avançou, nas décadas seguintes, até duplicar seu número na primeira metade do século XIX?

A resposta é: ganancia, políticas utópicas e desigualdade de distribuição de renda e riqueza. Voltemos lá ao ano de 1729, quando Swift publicou anonimamente sua “Modesta Proposta”. O povo irlandês estava bastante descontente com as políticas e leis impostas pela Inglaterra. Durante séculos a população da ilha, devido ao isolamento do continente europeu, as sucessivas invasões, até a dominação definitiva pelo império britânico, todos esses fatores associados a um clima pouco propício a diversos tipos de culturas de grãos e vegetais, e a falta de estradas ligando os condados mais isolados de Dublin, o centro administrativo  e financeiro, produziram uma acentuada desigualdade social.

Os Landlords (ou donos das terras) estavam preocupados com a baixa produtividade delas, mesmo explorando os  locatários que as ocupavam. Não era a pobreza ou a fome de seus colonos que os incomodava e sim o pouco lucro. Pois os nobres tinham que importar da Inglaterra boa parte das comidas, iguarias, tecidos e outros bens de consumo. E haviam altas taxas cobradas pela coroa britânica. Para pagar esses luxos eles precisavam exportar também. E a pouca produção de bens e commodities era agravada pela fome e miséria dos trabalhadores e agricultores.

Então alguém teve a brilhante ideia, por volta de 1700, de introduzir a batata inglesa ( não nativa da Irlanda) na agricultura. Esse cultivo se deu tão bem com o clima e o solo, que a produtividade, em termos de volume por área de plantio, se tornou altamente rentável. Cada dono de extensão de terra, as foi dividindo em propriedades menores, para acomodar a população que crescia rapidamente – mesmo que pela nutrição quase que exclusiva da abundante batata -  de tal forma que quase todos os campos cultiváveis se tornaram monocultura do tubérculo. Era tanta a produção, que os senhores das terras ( os nobres) começaram a ganhar mais exportando o produto para a Inglaterra e outros países. Tudo parecia ir bem, na política dominada pelo pensamento católico romano. Pobres felizes de barriga cheia de batata mais crianças nascendo e aumentando a mão-de-obra, e os ricos ficando mais ricos. Lembrando que a Igreja nunca condenou a riqueza, preferindo mais enaltecer as virtudes da pobreza como forma de servir a Deus.

O que ninguém previa – e até hoje é motivo de controvérsia entre historiadores divididos na tese do genocídio do povo irlandês na Fome da Batata – é que um fungo (Phytophthora infestans) que causa a doença conhecida como a requeima da batata, invadiu as plantações, trazidos nos navios de carga que chegavam com mercadorias de origem vegetal aos portos irlandeses. Isso se deu no ano de 1845 e cerca de 80% das plantações de batata foram dizimadas.

Os pequenos agricultores foram os primeiros a sofrerem os efeitos da má nutrição (levaram décadas comendo somente batatas) e da fome subsequente. Doenças como o tifo, a disenteria e a cólera dizimaram a população de uma forma tal, que por volta de 1848, quando o fungo se auto delimitou e desapareceu, entre 500 mil a 1,5 milhões de pessoas haviam morrido. E outro milhão havia deixado o país rumo ao continente e aos Estados Unidos. Como resultado, em 1911 a população havia diminuído para o mesmo número de habitantes que havia em 1780, ou cerca de 4 milhões de pessoas.

Aqui encerro esse artigo, voltando ao ponto inicial. O estado de coisas que vivemos no Brasil atual, com a violência chegando a tal ponto hediondo e disseminado, onde a vida, especialmente de crianças, grupos em situação de segregação ou abandono, idosos sem condições de manterem uma vida digna, cada vez mais são abandonados à própria sorte, por famílias igualmente pobres, lotando as ruas com cacos humanos, nos leva à reflexão, como no livro de Swift, se atualmente o valor à vida - principalmente para crianças, que deveriam ser cuidadas para nosso futuro – seja o mesmo descrito no conto. Suficiente para servir quatro porções de carne macia e suculenta a cavalheiros e damas de fino trato, ou serem trocadas pelos seus pais por uma dúzia de cabras, de forma a garantir o sustento dos demais membros da família por mais alguns meses.

Mais ainda, um alerta e uma indagação: será que não acreditamos em batatas como solução conveniente para povo e poder? Pois me parece que o milagre esperado pelas promessas utópicas e ao mesmo tempo simplistas, que nos foram vendidas não aconteceu.  O Phytophthora infestans representado por falácias, pensamentos oníricos e manias de grandeza parece ter feito seu estrago e está destruindo em pouco tempo toda a monocultura de ideias e dogmas plantados em poucas décadas como forma de acomodação de teorias úteis de solução de conflitos de interesses de unspoucos e de esperanças e anseios de muitos. E quem há de pagar por esses prejuízos?  Pois certamente os Landlords exigirão a recuperação de seus capitais perdidos e os servos com sempre hão de pagar essa conta. Talvez o lado positivo que sobre é que esses meeiros, não se conformem mais em dar suas crias de graça para encher barrigas opulentas. O perigo é que comessem eles também a acreditar que a solução modesta de Jonathan Swift possa lhes trazer também algum lucro. Assim como diria o Quincas Borba de Machado de Assis, só nos restaria dizer: “Ao vencedor as batatas!”.








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