As malas do Gedel estão gritando. As Alices perplexas. E as
Rainhas de Copas começam seus gritos histéricos pedindo que cortem as cabeças.
Em poucos dias tudo cessa. E os coelhos malucos voltam a fazer piruetas. O
Brasil é um grande País das Maravilhas. Melhor que o conto original. Nem o
próprio Lewis Carroll poderia imaginar um local e personagens tão bizarros.
Mas o que se ouve nos gritos das caixas de dinheiro
aprisionadas em um discreto apartamento em Salvador? Tudo depende dos ouvidos
onde os sons - alguns altos; outros, simples marulhos – conseguem alcançar.
Haverão as alices que se recusarão a
perceber a realidade, achando que ainda estão sonhando. E muitas
rainhas-de-copas se levantarão, aos berros cacofônicos, pedindo cabeças que
rolem na ladeira do onde o país também patina, rumo ao precipício.
Mas tem uma personagem, que não está no livro de Sir Charles Lutwidge Dodgson (o verdadeiro nome
de Carroll), que grita mais alto que as duas primeiras: a Alice das Copas. E aqui
faço um adendo, para não tornar tendencioso o texto que se segue: fiz analogias
até agora com personagens femininos. Mas leia-se, daqui por diante, que tanto
as “alices”, as “rainhas” e a nova personagem (Alice das Copas), se referem a
qualquer gênero, orientação sexual, cor ou credo. A ricos e pobres. A novos ou
velhos. Brasileiros ou estrangeiros. Feita a ressalva continuemos.
As Alices de Copas
gritam mais alto que a Rainha Louca porque pretendem abafar a miséria de suas
próprias consciências gritantes. Querem calar o Grilo Falante, o papagaio
irritante do ombro, o burro do Shrek que vive em cada um de nós. Em toda essa lama vomitada dos antros do
poder, das autarquias, das casas de prostituição (leia-se assembleia e cortes
de justiça), das empresas de privada e de fachada, emana um odor insuportável e
indisfarçável. Como peido em elevador com dois: quem soltou sabe e quem não
soltou sabe quem foi. Além do odor fétido, há o ruído. Mais alto, quanto maior
for a peidada. Ou a cagada que quase sempre se segue aos prenúncios mais
tímidos. Mas não menos fedorentos. E indisfarçáveis.
Mensalões,
lava-jatos, investigações sem nome, corrupções ainda nem descobertas
(oficialmente é claro...) despertam a ira cínica das Alices de Copa. E elas
querem cabeças. Mas se acham, elas mesmas, inocentes vítimas da queda na toca
do coelho. E imaginam que aceitando o infortúnio, como pesadelo passageiro,
logo estarão livres dele. Mas ao despertarem, logo perceberão que acordaram no
Pais das Maravilhas. E que o pesadelo era menos pior que o sonho vendido como
realidade por aqui.
Para não pensar que
nossa pobre personagem é só vítima inocente, devo acrescentar neste conto o
lado mais cruel, mesquinho e vil da personagem Alice de Copas. Entre várias
características da personagem, destaco a falta de ética, a desonestidade e a
cumplicidade sem escrúpulos como as mais nefastas e sombrias. Não que tais
atributos sejam exclusivos dela. Os demais integrantes desse conto tem, também
esses defeitos. Mas neles, talvez pesem mais as virtudes.
Quem se dispuser a
folhear com calma o conto surreal em que vive o país, perscrutando cada linha
do texto, cada palavra cuidadosamente colocada, cada nota de rodapé e adendos,
poderá identificar em cada aventura narrada, não apenas os gritos histéricos
das alices de copas, mas as gargantas
de ondem partem. Se alguém se der ao trabalho de escutar com cuidado o áudio do
açougueiro e seu sócio, perceberá, entre o tilintar das pedras de gelo no copo
de uísque, a voz de uma delas. Elogiado inclusive por seus chefes, está lá
presente, o simplório garçom, que serve com lealdade o clã de magarefes, há
pelo menos sete anos. E ele ainda agradece aos patrões a oportunidade!
Esse homem sabe mais
que a república inteira. Conhece mais do processo que os venais advogados,
juízes, procuradores que tentam contornar o estrago; tentando salvar o pescoço dos
que a Rainha de Copas - ela mesma doente e mentecapta -exige a degola. Deve
conhecer detalhes mais sórdidos e intricados do que os investigadores honestos
conseguiram, com muito trabalho, gasto de recursos e perspicácia, apurar. Por
que se calou tantos anos? Porquê se beneficiou simplesmente. Nem na milionésima
parte que seus patrões e os demais envolvidos. Mas obteve vantagens. Migalhas é
verdade, mas não por isso menos abjetas. Já que conhecedor de um crime, se
omitiu de delatar.
Não. Não desejo de
maneira nenhuma pegar o pobre copeiro para pagar o pato. Ele é apenas um dos
milhares de exemplos de gente a quem eu chamo neste texto de Alices de Copas.
Ou alguém ainda é alice-em-sonho para
achar que todos esses bilhões desviados puderam acontecer apenas pela canetada
de algumas figuras? Talvez eu até entenda que o homem comum, aquele do
chão-de-fábrica, o aluno relapso, preguiçoso e iludido da sistema escolar falido,
possa acreditar nisso. Mas não o funcionário de maior escalão das empresas
envolvidas. Não o servidor público, que teve que estudar muito para passar no
crivo de um concurso.
Essas pessoas, que
inclusive estão lendo esse texto, conhecem bem os trâmites e meandros
complicados e burocráticos a que deve passar cada processo de liberação de
verbas, cada lei aprovada na casa de tolerância, cada licitação executada por
qualquer órgão do governo obrigado a realizar concorrências públicas. São
exatamente essas Alices de Copa, as
que mais vão para as ruas com as caras pintadas de vermelho ou de
verde-amarelo, gritar pela degola dos corruptos. Sendo elas mesmas (não todas)
culpadas por conhecerem os mal-feitos e calarem.
O homem comum, o Sr.
Simpson – como certa vez declarou uma eminência do jornalismo marrom televisivo
– para o qual são direcionadas (e manipuladas) as notícias de escândalos
veiculadas, pode acreditar nisso. Que um presidente de estatal petroleira, na
calada da noite, no recôndito de sua majestosa sala no Cubo de Rubik, sentou-se
à frente de um computador rodeado de mesas com pilhas de pastas e documentos,
para redigir um contrato de compra de serviços viciados. Ao Sr. Simpson não é dado o direito de conhecer
a verdade por completo. Ninguém dirá a ele, que para cada fraude dessas que é
divulgada (fora as não esclarecidas ou abafadas) dezenas, senão centenas ou
mesmo milhares de pessoas tiveram acesso a maior parte desses documentos,
escutaram conversas estranhas de seus chefes, presenciaram malas suspeitas
transitando por lugares invulgares e mesmo as transportaram, sabendo bem o que
continham. Nesse último caso, houveram heróis anônimos ou conhecidos que
denunciaram o mal feito. A esses eu diria que são as alices verdadeiras, que sonham inocentes estarem tentando resolver
o pesadelo e sair da toca do coelho.
Em todos os grandes
escândalos já investigados e noticiados – e os que ainda ocorrem nas barbas da
justiça e do povo sem sequer serem questionados – tem necessariamente que haver
a participação de centenas de pessoas. São funcionários, do baixo ao alto
escalão, nas empresas privadas e órgãos envolvidos no processo, que precisam
receber, verificar, digitalizar, empostar dados em sistemas complexos. E
convenhamos, não são todas pessoas leigas. Em casos suspeitos, as
irregularidades já aparecem desde o início do processo. Ou no final.
No caso de compras
superfaturadas, por exemplo. Principalmente as que envolvem fornecimento de
bens materiais, nada circula, no caminho entre o fabricante-fornecedor até o
destino final, sem notas fiscais. E nelas, qualquer pessoa que as veja, pode
perceber se algo está errado. Mas se calam. É o exemplo típico de remédio e
medicamentos que chegam a hospitais (públicos ou privados): o administrador, o
almoxarife ou quem mais tenha acesso a essas notas, pode ver claramente se algo
está errado. E pode denunciar. Mas calam. E só abrem suas bocarras, depois de
estourado o escândalo, para gritarem nas passeatas feitas para “inglês ver”,
“Cortem as cabeças!”. Mas menos a minha pois sou vítima do sistema.
Qualquer empresário
honesto que já tenha sentado à uma mesa de negociações durante a fase final de
aberturas de envelopes, em licitações públicas, geralmente já sabe que vai
perder. Sabe que o escroto que está sentado a seu lado, com um sorriso
disfarçado (ou não), será o ganhador. Sabe todo o processo dali por diante.
Sabe como o vencedor mal intencionado, que oferta preço menor que o minimamente
possível para exercer o serviço a ser prestado, vai fazer para obter lucro e
ainda remunerar o esquema que o contrata. O Sr. Simpson só percebe que algo
está errado quando a ciclovia cai no mar com alarde ou quando não encontra
remédio na farmácia popular.
Quer dizer; ele
sente. Mas não entende direito o que está acontecendo. Mas é manobrado
habilmente, por grupos de interesse a ir às ruas gritar “Cortem as cabeças”
mesmo que sejam as erradas ou que não sejam todas as que deveriam ser cortadas.
Ele sequer imagina, na pantomima que se monta para essas manifestações – com
uma aura de democracia que une ricos e pobres – que o cidadão a seu lado, que
levou os filhos e a babá de branco, pode ter contribuído direta ou
indiretamente, pela omissão, para o estado de coisas que os empurrou habilmente
para a rua. Essa é a maior tragédia.
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