Indígena tenta impedir reintegração de posse no AM. Foto vencedora do Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos. Luiz Gonzaga Alves de Vasconcelos/ Jornal A Crítica (2008). |
Artigo lúcido do Sakamoto em seu blog. Mas chamo à atenção uma frase:
"As recomendações do relatório para reduzir esse quadro sinistro passam
por uma Reforma Tributária com justiça social ..."
Justiça social é algo muito além de reformar apenas a política
tributária. Porque cobrar mais de quem ganha mais e isentar quem ganha menos é
justo, mas insere no problema da desigualdade a noção de duas justiças sociais.
Na verdade temos várias "justiças sociais" no Brasil. Que alimenta
séculos de desigualdade.Como o autor fala mais adiante, o necessário seria
necessário "que houvessem botes salva-vidas para todos". Isso é
justiça social.
Nos países onde os cidadão forçaram os governantes e a elite
a implantar medidas de igualdade e justiça social, além de se cortarem
privilégios, cuidaram para que houvesse botes salva-vidas para todos. E não
estou falando de suficientes "botes
para primeira classe" e para as demais classes. Mas apenas um tipo de
bote.Para conseguirem isso, tiveram que limitar o lucro das empresas,
taxar os mais ricos e aplicar medidas de arrocho por um tempo determinado.
A premissa mais básica nesses países foi a valorização do
trabalho como mecanismo de segurança à uma existência decente. E a extirpação
da idéia que alguns tipos de trabalhos e profissões pudessem ser detentores de
maior valor para a sociedade. Assim, nesses países, a sociedade entendeu que o
salário do lixeiro não poderia ser menor que o do médico em função da natureza
ou grau de instrução necessário para o exercício dessas atividades. Hoje nos
países com mais igualdade, o salário de um médico não é mais que o dobro do do
coletor de lixo. Se chegar a tanto.
A sociedade entendeu que o benefício
coletivo gerado pelas duas atividades é necessário e fundamental para o bom
funcionamento e o bem estar de todos. Isso é justiça social.
E mesmo assim, apesar da pouca disparidade entre salários de
profissões mais especializadas e as que requerem menos formação, o médico vai
pagar mais imposto que o lixeiro. No fim a renda mensal dos dois quase se
equivalerá.
Mas aí vem a diferença fundamental em relação a países onde não há
esse tipo de igualdade: tanto o médico que ganha um pouco mais que o coletor de
lixo e paga mais imposto, quanto o lixeiro, que paga menos imposto, usam o
mesmo sistema de saúde, os filhos frequentam as mesmas escolas, os bairros onde
moram tem o mesmo nível de segurança e prestação de serviços básicos. Dessa forma, quando ambos necessitam de auxílio financeiro
em virtude de mudanças no padrão de vida, como nascimento de mais um filho,
doença incapacitante, desemprego, entrada dos filhos no ensino superior
gratuito ou pago, os dois terão os mesmos benefícios em qualidade e valores.
Esse é o "bote salva-vidas" único de uma justiça social
universalizada.
Se não há qualidade dos serviços e auxílios sociais para
todos, não adianta taxar o salário do médico que ganha R$ 20 mil em 50% e
isentar o salário do lixeiro que ganha R$ 2 mil achando que isso por si só vai
resolver a desigualdade. O lixeiro vai continuar não ganhando o suficiente para
uma vida digna, não vai ter escola e assistência de saúde de qualidade e vai
continuar vivendo em locais sem esses serviços básicos e sofrendo violência e
discriminação.
Por outro lado o médico, mesmo com a mordida de 50%, vai ainda receber
cinco vezes mais que o lixeiro, vai se apertar, como tem feito a classe média
no Brasil, mas vai ainda dar um jeito de tentar viver de forma
"diferenciada", colocando o filho em uma escola particular mais
barata, pagando um plano de saúde mais em conta e mudando para um apartamento
menor mas mesmo assim, em uma área "mais diferenciada" da cidade e
portanto com mais segurança e oferta de serviços básicos.
No fim. os dois continuarão no Titanic prestes a naufragar.
O médico pagando por seu "bote salva-vidas" diferenciado. E o lixeiro
dividindo poucos e insuficientes botes furados para permitir que todos se
salvem. Os dois vivem em "sistemas de justiça social" diferenciados.
O médico acha que é prejudicado por pagar impostos mais altos - mas mesmo assim
menores do que pagaria em um país com igualdade social - e não ter o retorno
desses impostos. E se revoltando, mesmo que não se mova para mudar isso, com os
mais ricos que se beneficiam de isenções do sistema tributário.
O lixeiro sente
na carne a precariedade dos serviços que lhe são oferecidos, mas ao mesmo tempo
se ilude e se contenta com as "bolsas isso e aquilo" que tem
finalidade eleitoreira e serve para os manter calados e obedientes ao sistema.
E ao mesmo tempo se enfurecem com os "privilégios" do médico, já que
provavelmente por sua condição de exclusão, falta de instrução adequada e
acesso a leitura, nem se dê conta que existam ainda, acima do
"doutor" pessoas com uma riqueza que ele não consegue sequer
imaginar. No imaginário dele, rico é o ator da novela da televisão, é o cantor
popular de sucesso, é o traficante dono da boca de drogas da comunidade em que
vive. Ele sequer suspeita que essas pessoas não são e não tem nem de longe a
riqueza dos desconhecidos bilionários que mantém o sistema que os oprime.
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